Luiza

As manhãs frias de agosto sempre chegam encobrindo de serração os baixios, até o cume das montanhas que circundam Santana do Ipanema. Enchendo duma aura de mistério a natureza das coisas. Isso faz-nos lembrar de Luiza. Morava sozinha, numa única casinha de taipa, quase embaixo dum frondoso pé de Amêndoa que tinha no caminho da Cadeia Pública. Do tempo em que a Avenida Professora Marinita Peixoto Nóya ainda era um grande terreno baldio chamado de Largo São Francisco.

Os meninos iam ao Largo soltar pipas. Naquela época, ali quase inexistia postes, e fiação elétrica. Num passado ainda mais distante existiu um cemitério por trás da igreja Sagrada Família. Falavam os meninos que Luiza era uma bruxa. Motivos havia de sobra pra achar isso, era realmente esquisita. Além de morar naquele casebre, num terreno que fora cemitério, mantinha no terreiro de casa um grande tacho fervente. Atirava a ele, todo tipo de sorte. Desde coisas estranhas a ossos e ervas. Um dos moleques jurava, um dia tê-la visto atirando ao caldeirão um bebê sem vida. Diziam que ela tinha um olho bem no meio da palma da mão.
Professor Maximiliano, nos tempos atuais, saiu lá de Natal, Rio Grande do Norte, prestou concurso no serviço público estadual de Alagoas e foi exercer a cadeira de Filosofia na Escola Estadual Mileno Ferreira. A despeito de que professor de filosofia de louco todos tem um pouco, este não era diferente. Dentre suas excentricidades, dizia que aconteciam coisas esquisitas dentro da casa que ocupava com a esposa, na Avenida Marinita Peixoto Nóya. Falava-nos que a lâmpada do quarto se acendia sozinha, panelas despencavam dos armários na cozinha e o cachorro amarrado lá no quintal, toda noite latia assustado sem ter nem pra que. Mas ninguém dava ouvidos ao professor, afinal uma pessoa que um dia ficara preso esquecido na biblioteca da escola, a princípio não devia ser levado muito a sério.
  
Ainda nos tempos idos, descobriríamos que naquele tacho Luiza fazia sabão, chamado de sabão da terra. Mesmo assim os meninos mantinham distância do casebre. Tinham medo dela e de sua cara de poucos amigos. Sempre trajando longos vestidos de cigana, trazia um lenço colorido na cabeça que escondia seu cabelo. O rosto parecia talhado em pedra, de pessoa sofrida, amarga. Senhoras da sociedade chegavam ao Largo em carros bonitos, vindos de muito longe, pra fazerem consulta esotéricas com Luiza, que tinha fama de cartomante. Teve um dia que adoeci de catapora, e minha mãe foi chamar Luiza pra aplicar benzedura, afim de afastar a febre. Deixou uns galhos de uma planta chamada Samba Caitá pra minha mãe banhar-me. Vieram-me delírios sobre os lençóis, não sabia ao certo se os calafrios eram pelo mal dos cistos cutâneos ou pela presença da bruxa. Em vão tentei ver o olho na palma da sua mão. Tudo que consegui foi ter pesadelos a noite, a ponto de gritar por mamãe sem que conseguisse fazê-la ouvir-me.
Numa noite quente de verão, houve grande alarido no Largo São Francisco, o casebre de Luiza ardia em chamas. Já iam altas as labaredas quando os policiais chegaram ali. Nada mais se podia fazer. Presumiu-se que uma faísca escapou das brasas do fogo do tacho de sabão. No outro dia fomos olhar. No lugar onde havia o casebre, só um monte de barro e alguns caibros carbonizados ainda fumegavam. Talvez temendo maus agouros, ninguém se atreveu revirar pra ver se encontrava o que possivelmente poderia ter sobrado do corpo da cigana. Luiza acabaria virando lenda. Se queríamos meter medo a um colega, dizia: a bruxa Luiza de noite vem te pegar.

O excêntrico professor Maximiliano foi embora de Santana do Ipanema. Professor Maurilo, pernambucano de Bom Conselho, viria pra substituí-lo. Coincidências à parte, o novo professor e sua mãe, uma viúva aposentada, foram ocupar justamente a casa onde morou o professor de filosofia. Ao contrário do colega, este nunca andou reclamando de nada acontecendo ali. Costumava adormecer assistindo tevê. De certo, professor Maurilo acharia muito estranho, se conseguisse permanecer acordado, e percebesse a tevê mudando sozinha de canal. Deixando de transmitir o programa de comentários do futebol e exibindo na tela, uma cena inusitada, bucólica, um largo onde aparecia um frondoso pé de amêndoa, um casebre de taipa e uma mulher de vestido longo e lenço na cabeça, com uma enorme colher de pau, mexendo o conteúdo de um tacho ardente.


Fabio Campos

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