Poço dos Homens

Lá vinha o Ipanema, de águas salobras cor de ferrugem, pra dá nome à cidade. Surgido no largo da barragem vinha se chegando, descendo vagaroso, feito imensa jibóia no leito de si mesmo. No poço do Juá, se alargando tomando aspecto dum lago, e tornando a afunilar, pra chegar ao poço dos Homens. Em tempos imemoriais, bem ali, ficava arredio, fazia redemoinhos. Tornava-se profundo, misterioso.

Dia de feira a encosta ficava coalhada de carros de bois. Ao lado direito do largo, a casa do padre Bulhões. Velho casarão de linhas sóbrias das construções do início do século passado. Imensa varanda ornada de samambaias. Ciprestes e musgos escalavam as muretas, dando um toque ainda mais bucólico à edificação, concebida no batente do riacho. Justo no ponto onde o Camoxinga, vai desaguar no Ipanema. Na bifurcação das águas, a imponente moradia do padre e rude ponte de madeira a dar acesso aos passantes que vinham do noroeste da cidade.

Poço dos Homens, porque carecia de coragem e força nos braços pra se aventurar naquelas águas. Os canoeiros aproveitavam a mansidão das águas um pouco mais a cima, e fazia a travessia dos viajantes que seguiam pra Pão de Açúcar. Uma balsa, feita de troncos de mulungu e tonéis de querosene calafetados, baldeava caminhonetes, e graciosos carangos de passeio. Quatro pares de braços fortes manejavam os remos que impulsionavam a embarcação até a outra margem do rio. Poço dos Homens olhava das pedras o vai-e-vem de outros homens, seguindo suas vidas e seus destinos. Mulheres lavavam roupas e tomavam banho, lá longe, afastadas dali. Poço dos homens, e dos meninos afoitos que mergulhariam para sempre suas vidas e seus destinos no mais fundo de suas águas, pela arrogância de tê-lo desafiado. E quando as águas das cheias abaixavam, pescadores iam tentar resgatar os corpos sem almas, deixadas pra sempre no fundo do poço. Dona Mãezinha trazia uma criança que ainda não tinha pecado grave, e fazia com que soltasse na correnteza do rio, uma vela acesa, apoiada na lasca duma cabaça. Dizia: o quengo vai ficar boiando onde o corpo do afogado estiver!

Diziam os mais velhos, a maior cheia que o rio já dera, teria banhado os primeiros degraus da matriz de Senhora Santana. Já faz tanto tempo e poucos são os que sustentam que realmente tenha acontecido um dia. A igreja matriz nem tinha ainda a majestosa torre que hoje possui. Bem como inexistia o casario que compõe a parte de baixo da rua do comércio. O que havia era um enfileirado de casas, alternadas por alguns sobradões seguindo na parte mais alta da encosta até o Bebedouro, de onde a cidade se esticou. Isso é do tempo em que os homens influentes da cidade, trajavam terno de linho e chapéu de massa e as mulheres vestiam longos vestidos, cheios de babados e anáguas.

Contam que por essa época, no casarão que fica ao lado da igreja matriz, pras bandas do Mercado de Carne, morava um importante comerciante chamado de Ariovaldo Nunes Lisboa, casado com Sinhá Leopoldina Nunes Lisboa. O casal tivera duas filhas, Maria das Mercedes e Maria do Bom Parto. Trabalho pra vir ao mundo, teria dado esta de cá. Na hora da concepção, estaria enlaçada pelo cordão umbilical. Dona Mãezinha parteira teria pedido a sua tia Teodora, pra fazer promessa a Nossa Senhora do Bom Parto: se mãe e filha escapasse, teriam que dar o seu santo nome àquela cria. As meninas acabariam separadas do convívio. Mercedes seria criada pelos seus pais e Maria do Bom Parto pela tia.

Maria das Mercedes fazia parte do coral da igreja. Tinha aulas de latim e música com o padre Bulhões. Ajudava na catequese de crianças e sonhava em se tornar uma religiosa. Integrava o grupo de devotas senhorinhas zeladora da igreja. Maria do Bom Parto seguiu exatamente o caminho oposto. Tinha aulas particular de francês, queria aprender balé, gostava de carnaval, fumava escondido dos mais velhos. Com as colegas de escola criou um grupo de teatro. Um dia quando ainda criança, se inventou de comer cabelouro atrás da porta, pra ver se ficava bonita, feito a irmã.

Certo rapaz de nome Ismael Constantino, por incentivo da família do padre, havia se tornado coroinha. Conheceu Maria das Mercedes e pela moça teria se apaixonado, que infelizmente não correspondera àquele amor. Foi numa tarde chuvosa, do mês de julho, quando já se haviam iniciados os preparativos para as festa da padroeira Senhora Santana. Depois do ensaio dos cânticos, no salão paroquial, Ismael ao ver-se sozinho com Mercedes, acabaria por violentar a moça. A jovem sem revelar o que lhe havia ocorrido, caiu em profunda depressão, e não demoraria, viria a falecer. O tempo passou. Ismael ao atingir a maioridade deixou de ser coroinha. Tornou-se fiscal da intendência. Não demoraria muito na função, partiria pra capital do estado. Dez anos depois voltaria a Santana do Ipanema, já formado, anel de bacharel no dedo, tornado escrivão da polícia. Resolveu finalmente casar, para tanto desposaria a professora Maria do Bom Parto, a filha de criação de Teodora Barros, e do ilustre capitão Galdino Barros que morava no outro lado do rio Ipanema.

Capitão Galdino e Sinhá Teodora moravam na única casa descente à outra margem do rio. Num maciço de barro vermelho, chamado de Cachimbo Eterno. A casa de respeito tinha traços de gótico nos umbrais, cachos de pêssegos no arremate dos oitões. E cordões sinuosos nas beiras que desciam pelas pilastras. Os portões de ferro trabalhado, e os portais em madeira chanfrada. A casa cuja frente olhava pra Santana, ficava ao lado da estrada que dava acesso ao vizinho município de Pão de açúcar. Mais adiante, subindo a encosta, uma fileira de casebres, fazia a nobre morada do capitão, parecer uma rainha rodeada de pobres súditos. À noite, uma malha de pontos de luzes amarelada dos candeeiros, dentro das casinhas dos pescadores, contrastava com a vistosa luz prateada, dos bicos de gás que alumiava a casa do capitão.

Ao chegar de determinada viagem da capital, numa noite de inverno, Doutor Ismael deu de querer atravessar o rio. Era fria noite de julho e chovia. O rio mais e mais tomava água. Nunca o balseiro se arriscara em tal empreendimento e em tais condições. O escrivão e sua teimosia de causídico muito queria rever a esposa, havia dias estava afastado. Trazia rica prataria, uma fortuna em jóias, dobrões de ouro da capital. Queria que se alegrasse com os presentes de recém-casados. Depois de muita discussão, venceu a rudeza da autoridade, contra a bruteza do experiente homem do rio. Iniciaram a travessia, enquanto isso o rio crescia. Mal chegariam à metade do percurso, e o monstro dágua deu a demonstrar toda sua ira pela afronta daqueles reles mortais a desafiá-lo. E aquele ponto disforme no meio da correnteza, aos poucos foi sendo tragado pela imensa massa de água, em meio à sinistra escuridão de breu aterrador. A chuva tornada um dilúvio de vento e fúria arrastou a frágil embarcação pro fundo. No outro dia ainda chovia. Debaixo de um negro guarda-chuva, lá ia Dona mãezinha descendo em direção ao Ipanema, uma criança a tiracolo. Iam largar nas águas, uma cabaça com uma vela acesa. Pra ir encontrar o corpo sem alma de Doutor Ismael dentro do poço dos homens.


Fabio Campos

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