Seu Cariolano

Já faz mais de oitenta anos, que este mesmo sol, que esquenta as frias manhãs agostinas. Alumiou as matinais de sábado de Santana do Ipanema de então. As largas pedras do calçamento da Praça do Comércio, as empanadas das bancas dos mercadores no passeio, estufadas de luz. A escadaria da matriz e a calçada da farmácia de Seu Cariolano salpicada de orvalho. Nem bem a botica abria, e uma ruma de matuto se aglomerava à porta, pra uma consulta médica. Seu Cariolano chegava trajado no seu impecável terno de linho. Chapéu coco na cabeça, e bengala à mão. Afagava a cabeça duma criança, à tiracolo da mãe. As mãos gordas. No médio da destra, ostentava um rico anel de jaspe emparelhado com uma grossa aliança de ouro. Sorria, balançando a imensa pança. Acabava tossindo por conta das vias respiratórias impregnadas de tabaco. E os grandes olhos acabavam vermelhos e lacrimejantes devido ao acesso de tosse. No final da tarde chegava mestre Idalino funileiro, Amarildo contínuo da Intendência Municipal e Zezinho da Bomba de querosene. Um deles iniciaria uma partida de gamão com Seu Cariolano. O Bar Lira D’Ouro enchia o passeio de música de Chiquinha Gonzaga.

Mulheres ricamente trajadas deslizavam suave no leito da rua sob alegres sombrinhas. Ocupavam os trilhos dos carros e cabriolés. Pouco incomodadas se deixavam irritados os condutores, que encostavam às suas retaguardas, e acionavam insistentemente a buzina rouca e engraçada. Ululante conversar do populacho. Meninos brincavam como se a via fosse seus quintais, sem dar atenção aos ciclistas em suas roupas graciosas e bonés bufantes. Os homens sentados em cadeiras de palhinhas lançavam ao ar fumaça plúmbea e azulada, de seus charutos, junto seguiam seus olhares preguiçosos de reprovação aos mendigos e ciganos, que buscavam o que restou da feira. Davam-se em comércio da vida alheia. Os que estavam sentados as calçadas, ocupavam-se com tudo que se movimentava ou passava. Punham-se a sedutora tarefa de observar as pessoas. De como estavam vestidas ou como se apresentavam no passeio. Com quem andavam e como andavam. Seu Cariolano esperava Pedro cambista, queria saber o resultado do jogo do bicho. Vez outra acertava. Se sonhava com a companheira, brava e briguenta, investia na cobra. Caso tranquila, arriscava na águia, avestruz ou borboleta. Se no sonho aparecesse Zé Doidinho, punha aposta no veado. O fato de uma pessoa que nunca mais tinha visto atravessar seu caminho, poderia ser motivo pra uma aposta. Uma bêbada chamada Maria Goiabeira, se aparecia na farmácia importunando, lá ia apostar no cachorro. O açougueiro João Fofo, a muito desaparecido, se ia comprar analgésicos, apostava no urso. O estivador, Porco Véio, sumido, se lhes vinha, a aposta era no porco. Não acertava sempre, mas valia a pena tentar.

Seu Cariolano tinha por esposa Dona Alina, e por filha Jorgina. Com o falecimento de Dona Alina, foi morar no Largo São Francisco, amasiando-se com Dona Nina. Gostava e colecionava lamparinas. Desde jovem sempre fora chegado a jogatina. O filho Jairo após o almoço pedia, muito embora tentasse evitar lhe dar, cajuína. Antes da cesta lia o Jornal do Commércio. Ficou sabendo da grande depressão econômica. A crise financeira que afetara a Bolsa de Valores de Nova Iorque. E que o presidente Getúlio Vargas teria mandado queimar no interior de São Paulo, centenas de sacas de café, para que o produto mais exportado do Brasil pros Estados Unidos, Europa e Ásia não perdesse valor de mercado. Ficou sabendo de Maria Francisca Edwiges Neves Gonzaga, a popularíssima cantora e vedete Chiquinha Gonzaga chegara da América muito doente. Seu Cariolano após a merecida cesta, acordava com a insistente buzina do carrinho de doces de Seu Zelito, que vendia umas bengalas de açúcar cristal tão branquinhas! E tinha umas, raiadas com essências de groselha. Jairo ganhava uma nota de um Cruzeiro novinha estalando! Era uma nota esverdeada que trazia a efígie do navegador lusitano Pedro Alvares Cabral. Ele punha-se a cheirar a nota, pois achava bom o odor da cédula. Seu Carol ralhava, dizia pra não fazer aquilo, pois além de conter micróbios, era tóxica a tinta do dinheiro. O menino contestava dizendo que a mãe cheirava sempre que sentia tonturas. Um dia, o Intendente Municipal Senhor Francisco Soares de Campos, nomeou o Senhor Cariolano Amaral e Souza, delegado do Distrito de Santana do Ipanema. Foi num sábado, duas mulheres se engalfinhou numa briga na Rua do Velame. O motivo da contenda, a posse de uma criança. Ambas se diziam mãe do recém-nascido. Foram presas, levadas pra Cadeia Pública na Rua do Sebo, ficaram na sala de custódia. Uma cela suja, de paredes encardidas e que cheirava a mofo. Senhor Cariolano levou o lactante pra sua casa. Deixou sob os cuidados de Dona Nina. O motivo porque as duas brigavam pela posse da cria, o delegado sabia. Um abastado comerciante, maritalmente comprometido, reconhecia a paternidade, não se negava a conceder uma pensão alimentícia pro filho bastardo. Só que tivera casos amorosos com as duas mulheres arruaceiras. Senhor delegado Cariolano chegaria a delegacia muito apreensivo. Pensava num meio de resolver o caso do bebê com duas mães. Colocou-se a cadeira atrás do birô, e pôs-se a ler o Jornal do Commércio. De repente, ao ler no periódico a passagem bíblica daquele dia, teve um estalo. Descobrira um meio de resolver o impasse. Mandou que fosse trazida a criança, e diante das duas damas que se diziam mães do bebê, declarou que a criança não ficaria com nenhuma delas. Seria encaminhada para o Convento de Frades Franciscanos em Penedo. Uma das mulheres muito triste e resignada, abrindo mão da posse do filho, concedeu o direito à outra de ficar com ele. O delegado Carol sabiamente reconheceu como sendo àquela a verdadeira mãe, e a entregou a criança. Santana do Ipanema por um momento pode ter o seu rei Salomão.


Fabio Campos

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