Submarino Bahia em Santana do Ipanema

Éramos seis no tempo de minha infância. Francisco e Fernando distanciados dos demais, por serem os mais velhos dentre os irmãos. O primogênito alçou vôo de rouxinol. Apossando-se dos dons, cultivou a voz. Brilharia fazendo locução nos programas de auditórios dos áureos tempos dos cantores de rádio. Fernando, talvez influenciado pelos tios que serviram a polícia militar, quis ser fuzileiro naval. Ainda garoto teria dado maior susto na nossa mãe. Foi assim, as casas de Santana do Ipanema naquele tempo ainda não tinham água encanada, tínhamos cisternas cheias com água do rio Ipanema, trazida nos lombos de burros. Aproveitando um descuido de mamãe o menino pularia dentro da cisterna lá de casa, e sairia nadando na maior categoria.

Aquele menino tornado rapaz viria seu sonho concretizar-se. Iria nadar em águas ainda mais profundas, de mares nunca dantes navegados. Viajaria com papai pra engajar-se nas fileiras dos bravos fuzileiros navais da Marinha do Brasil. Partiria pra conquistar a primeira capital do país, ingressou na Escola Naval de Salvador. Isso foi no ano de 1969. Vivia-se o crescente fenômeno da guerra fria. Americanos e soviéticos se digladiavam pra impor suas ideologias políticas tentando conquistar aliados perante as nações do mundo. Em meio à corrida armamentista, os ianques se inventariam de divulgar que haviam conseguido subir ao cosmo no foguete Apolo 11, pra conquistar a lua e os lunáticos. Meu pai nunca daria crédito ao maior engodo do século! E que muito suscitaria o surgimento de marchinhas de carnaval, servindo também de inspiração pra boemia da Lapa carioca. Uma revolução se operava em todas as esferas sociais principalmente política e cultural. Vivíamos o maldito Brasil do lema “ame-o ou deixe-o!” Brasileiros tendo que deixar o país, e nem seria por livre e espontânea vontade. Exilados políticos, expulsos pelo regime militar. A Bossa Nova e a Jovem Guarda era moda nacional. A tropicália surgindo e nossa Seleção brasileira de Futebol se preparava para conquistar o tri no México.

Uma vez por ano Fernando retornava a Santana do Ipanema. Motivo de orgulho era pra todos nós, termos um irmão marinheiro. De volta à terra natal, também outros marinheiros santanenses pra rever a família, Roberval Nóya, Plínio, Ângelo, entre outros. Ainda que fosse só por uns dias, quanta alegria sentia mamãe. Uma saudade contida no peito que inevitavelmente a levaria a incontidas lágrimas no dia do retorno do navegante. Em todas as vezes que veio, trazia relíquias de caserna. Tínhamos a oportunidade de brincar com um quepe de verdade e não de papel, cuja fronte ostentava o belo símbolo da Marinha brasileira. A boina branca semelhante a do Popye. As placas prateadas de identificação do oficial que deveriam trazer sempre penduradas ao pescoço. As peças de roupas do fardamento com um código de numeração decalcado. Através de fotos coloridas, já um avanço pra época! Mostrava-nos como era um dia de rotina à bordo de um submarino. Não, sem antes tentar explicar praquelas mentes pueris como uma embarcação enorme daquelas conseguia ficar muito tempo, dias e até meses, embaixo d’água, tarefa nada fácil de convencer! Junto com outros colegas fotografavam-se, executando as tarefas da tripulação. Foto monitorando a superfície, submerso a mais de mil metros de profundidade. A casa de máquinas, o desembarque no cais do porto, o lançamento de âncoras ao mar. No alojamento ou apresentando armas, perfilados junto à guarnição. Contava-nos histórias de fazer rir e relembrar. A farda branquinha lavada por minha mãe, pendurada no varal da casa paterna. As vestes do nosso herói, feito armadura de um guerreiro, repousavam balançando ao vento. Como se desse uma trégua, pra logo ir aventurar-se em nova odisséia, que não perdia por esperar. Doce recordação! As fitas cinematográficas que passaria a interessar-nos a partir de então, tinham que ter como tema jornadas náuticas. “O Marinheiro de Gibraltar” assistiríamos pelo menos umas três vezes, nas matinês do Cine Alvorada.
Noutro ano nosso marinheiro traria souvenires de vários portos de países por onde passara. Da Argentina um conjunto de copos e bandejas com paisagens das praias de Mar Del Plata. Uma máquina fotográfica paraguaia, a primeira que até então havíamos visto com flash embutido, um colorido quadro guatemalteco. Saca-rolha caribenho. Chaveiros chilenos e peruanos pra coleção da irmã Selma. No meio das malas desfeitas do marinheiro, espalhado na cama, diversos exemplares de um curso de inglês moderníssimo pra época, que vinha acompanhado de compactos contendo as aulas em áudio. Uma quantidade considerável de discos Long Plays, do melhor que existia na época no que se referia à música internacional. E que muito nos influenciaram pra apurar nosso gosto musical. Discos do cantor Johnny Matins, The Archies, “Sugar Sugar!”, Aples, The 5th Dimenson. Os primeiros a chegar a Santana do Ipanema quiçá no país. Foi numa pequena vitrola a pilha de fabricação asiática, chegada através das águas geladas da Terra do Fogo, do Pacifico Sul que ouvimos pela primeira vez a música que desde então evocava segundo o plano esotérico a Era de Aquário que anunciava um mundo de paz, amor e harmonia a iniciar-se no final do século vinte. 

When the moon is in the Seventh House
And Jupiter aligns with Mars
Then peace will guide the planets
And love will steer the stars
This is the dawning of the age of Aquarius
Age of Aquarius
Aquarius!
Aquarius!

Teve um ano que Fernando ficaria impossibilitado de voltar a sua terra natal para as tão merecidas férias. Descobriríamos que o argonauta dos bravios sertões, se encontrava em importante excursão de patrulhamento do litoral brasileiro a bordo do submarino Bahia. Ficaríamos sabendo que em determinada data aquela embarcação estaria atracando no cais do porto de Jaraguá em Maceió. Papai não pensaria duas vezes, na data aprazada, fretou um carro que levaria a todos nós até o cais do porto no litoral alagoano. Para as crianças uma aventura indescritível, papai e mamãe radiantes. Imaginemos isso, recordando da dificuldade que era à época, deslocar-se de Santana do Ipanema até a capital do estado das Alagoas. Não era tão fácil conseguir um carro, ainda mais que até Palmeira dos Índios, a estrada de rodagem não era pavimentada. Na mente do infante, alguns episódios deste evento ficariam registrados pra sempre. Um deles, a chegada ao cais do porto. Era tarde, início de noite. Se fazia um mar ameaçador, assustador! Àquela ocasião sem a exuberância e beleza de mar ensolarado e alegre, que concebíamos em fotografias de antes. Causava-me medo saber que pessoas, feito meu irmão, tinha coragem pra se aventurar por águas tão turbulentas, inquietas. Ao chegarmos ao cais do porto tivemos que baldear pra um Jipe da Marinha brasileira. Pois o táxi era carro civil, jamais poderia avançar além dos portões, toda a área do porto era considerada área militar. Preludiando aquele crepúsculo fantástico, caprichosamente caía uma fina garoa. Vislumbramos pela primeira e única vez em nossa vida, o extraordinário hipopótamo de ferro que flutuava, tendo só um pouco de si, emerso das águas bravias. E tudo o que pudemos trazer do submarino Bahia pra Santana do Ipanema, fora o cheiro de mar nas narinas, a terna lembrança de minha mãe acenando pro insensível monstro marinho que levava um de seus filhos nas entranhas.


Fabio Campos

2 comentários:

  1. Caro irmão Fábio, tenho apreciado suas crônicas e excelentes charges ilustrativas.
    Abraços
    Fernando

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  2. Ficamos deveras agradecido ao irmão. Hoje residindo no Rio de Janeiro já há tantos anos...E num Email corrige-nos não foi Fuzileiro Naval mas Marinheiro! Talvez empolgados pelos filmes americanos fizemos esse novo perfil, Um abraço caro irmão Fernando!

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