Beneditos

Essa é uma história de nomes de pessoas. De lugares, e de páginas que o tempo volta e meia teima em reviver, revirar. Quando se casaram meus pais foi morar no Bairro Camoxinga, no largo São Cristovão. A casa ficava virada pro norte, tão escassa a quantidade de construções em Santana do Ipanema naquela época, que da porta dava pra ver a ladeira que subia pro cemitério Santa Sofia. O século vinte tinha nesse tempo, seus quarenta e poucos anos. Nos primeiros anos de casado meu pai vivia de jogo, em mesas de cassino, jogador profissional. Dias e noites passava nas mesas de pôquer.

Depois da casa do padre Bulhões, na subida da ladeira em direção a Camoxinga tinha a padaria de Seu Benedito. A casa do padre ficava na confluência do riacho com o rio Ipanema. Bem ali construiriam uma ponte que ficaria conhecida como ponte do padre. Minha mãe desde menina aprendeu a gostar de ir à igreja. O costume trazido da infância permaneceu depois de casada. As sextas-feiras dona Maroquita ia à padaria de Seu Benedito buscar a massa pra confeccionar as hóstias, pras missas do padre Bulhões. Naquela casa da Camoxinga minha mãe teve o primeiro filho. Papai tinha lido um livro, um romance cujo protagonista chamava-se Silvano, batizaria o filho com esse nome. Seu Benedito da padaria foi convidado pra ser padrinho do menino. Silvano foi uma criança muito doente, não completaria um ano e morreu. As folhas da craibeira punha seu tapete amarelo no chão da praça. O colibri de flor em flor ia depositando seu beijo. Doce beijo dom de vida. Compadre Benedito sem afilhado. Triste Benedito do outono.

Do Largo São Cristovão meus pais se mudaram pro início da Rua Barão do Rio Branco. A casa tinha a fachada virada pra matriz de Senhora Santana. Banhada de sol toda manhã, da porta da frente dava pra ver o comércio, os armazéns de estivas. Dos fundos olhava-se pro rio Ipanema, o poço do juá, o poço dos homens. Na frente à prosa do fim de tarde até a noite. Nos fundos a poesia, a qualquer hora. Naquela casa nasceria Francisco, segundo filho de minha mãe. Papai tinha um irmão soldado de polícia, chamava-se Francisco de Campos. Por isso o segundo filho se chamaria Francisco. Teve um dia que um touro, encontrando a porta dos fundos aberta, entraria casa à dentro. O inocente Francisco dormia numa rede, minha mãe em desespero correu a rua em busca de auxílio. Negro Benedito um estivador deixou seus afazeres, impondo seu porte físico bradando um forte berro fez o boi considerar, e recuar pra beira do rio. Bravo Benedito, negro na pele, branco na alma. Costumava arrancar gargalhadas dos meninos com suas estripulias. Benedito redemoinho. Frívolo Benedito de verão.

Meus pais foram morar na Rua Nova de casas com suas belas escadarias. Rua dos primeiros madrigais. Os seresteiros nas noites romanescas iam cantar nas sacadas das moçoilas casadoiras. Rua da farmácia de Seu Aleixo. Rua do calçamento de pedras antigas, que sepultavam histórias do tempo da escravidão. Negros iam pro Bebedouro tangendo muares e voltavam trazendo barris cheios de rio. No bailado das cangalhas as ancoretas arremedavam o som do líquido precioso, descendo glut-glut pelas gargantas ávidas dos carvoeiros, dos tangedores de carro de boi. A pedra assentada na rua, sorvia o suor caído do rosto, junto com as lágrimas do rio. Benedito carreiro parou à porta da casa, e chamou minha mãe. Francisco, que apenas quatro anos tinha, por ele foi trazido do rio. Benedito caboclo de mãos calejadas, no árduo trabalho do campo. Benedito de pele curtida de sol e de rio. Providencial Bendito de inverno.

Outra vez mudaram-se meus pais. Foram morar no largo do Monumento. Dona Osvalinda e senhor Sebastião, os padrinhos de Francisco comentaria que os compadres da família Campos, teriam ido morar no lado burguês da cidade. Largo do Monumento da igrejinha de Senhora da Assunção, do Grupo Escolar Padre Francisco Correia, do Ginásio Santana. Também dos Correios e Telégrafos. Onde trabalhava seu Bêbe, esposo de dona Aída Malta. Pais de Benedito, eram estes vizinhos de meus pais. Estava um dia à janela da casa, Fernando o terceiro filho de minha mãe. Ele e o irmão Francisco. Tinham então seis e sete anos de idade. Benedito, irmão de Homero, Odaléia, Rejane e Telê, veio bem de vagarinho, e pimba! Tacou um tabefe no pé de Fernando. O menino agredido não se fez de rogado, catou uma touceira de capim e zuniu, indo cair dentro da casa do Benedito. De barro foi manchar, o verniz do centro, a porcelana do jarro de flores. Pronto, lá estavam as mães numa discussão, na calçada. O céu índigo a tudo testemunhava. Alvas nuvens pareciam sorrir das traquinagens dos meninos. Benedito, este já corria a aprontar novas estripulias. Benedito feito pinceladas de primavera.

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