O Sobrado

Um chapéu Coty na cabeça. Terno marinho, fino broche à lapela. Lenço branco esmeradamente dobrado no bolso, formando duas pirâmides. Calça de linho, sapatos de couro envernizado. As mãos alvíssimas, bem cuidadas, apoiada uma na outra, sobre os joelhos cruzados. O homem estava á mesa, sozinho. Tinha o rosto duro, mas naquele momento parecia tranquilo. Um bigode bem cuidado. Parou de olhar pro quadro na parede, minha presença chamou sua atenção, fitou-me. O que fazia ali? Os cabelos grisalhos denunciavam a meia idade. Tudo isso percebi dum só lance, ao subir a escadaria do velho sobrado, onde funciona o Conselho Tutelar do Município de Santana do Ipanema, ao fundo da Matriz de Senhora Santana. Dirigi-me a uma sala contígua. Procurava por um funcionário. Podia-se identificá-los pela farda, uma blusa vermelha carmim. Fui ali, pra falar com o Conselheiro Natan, colega de Faculdade. Tínhamos um trabalho pra fazer. Uma moça bonita, de longos cabelos negros, por trás de um pequeno birô, sorrindo-me - com lindos olhos negros, e dentes perfeitos - informou-me que meu amigo havia saído, mas logo retornaria. Resolvi esperá-lo. Voltei pra sentar à mesa, onde se encontrava o homem de trajes antigos.

O homem não estava mais lá. Havia um menino em seu lugar. Dez anos talvez. Cabelos crespos em desalinho. Pele morena. Trajava uma surrada camiseta do Corinthians, e um calção de poliéster, em idêntico estado de situação. Nos pés rajados de poeira, um roto par de chinelas de dedos. Tinha o rosto marcado por manchas de grude, suor e lágrimas. Havia chorado. Esperava. Dois bonecos, réplicas de heróis de vídeos games que tinha, punha pra brigar sobre a mesa. Não demorou e Natan chegou. Cumprimentou-nos, e foi resolver o caso do menino. Quis deixá-los à vontade, fui até a janela. Dali tinha-se uma visão magnífica. Além do que o sol da tarde fazia o colorido das coisas ainda mais vivo, pulsante. As coisas de metal, luminárias dos postes, canaletas d’água, reluziam com sagacidade. O imponente casarão do museu Darras Nóya, com sua fileira de janelas, remetendo-nos a tempos imorredouros, de uma Santana do Ipanema colonial. Transeuntes, alheios ao que aquele casario um dia presenciara e pra nossa história representava, passavam incólumes. Parte do largo do comércio flertava-nos pelo estreito beco. A fachada das casas comerciais, o Mercado Municipal da Carne. O inicio da Rua Tertuliano Nepomuceno. Um céu quase emerso dum mar de azul turquesa que nunca foi da Turquia. Pras bandas do Norte flutuando lentamente, uns capuchos branquinhos, que a gente quando era menino chamava de carneirinhos.

Sem tirar os olhos das nuvenzinhas que se esquentavam ao sol, rumando alvissareiras pro poente, percebi meu amigo aproximar-se. Perguntou-me se sabia que aquele sobrado era mal-assombrado. Disse-lhe que não sabia. Sem sairmos da janela, contaria que certa noite teve que vir a repartição, e ouviu o choro desesperado de duas crianças num dos cômodos, foi até lá e nada havia. Daí pôs-se a contar uma história. História de um tempo que não havia ainda energia elétrica, nem água encanada em Santana do Ipanema. Tempo em que senhores feudais e missionários, desbravadores viajaram de terras longínquas para se estabelecerem em terras devolutas, concedidas pelo provisório governo colonial. A prosperidade que aqui vislumbravam, trouxe pra cá comerciantes, que apostavam num enriquecimento rápido, num acúmulo de fortuna, com a exploração das riquezas naturais que por aqui havia em abundância, madeira, couro, algodão. Traziam de muito longe, tecidos, perfumes e especiarias. Remanescentes de corsários fugitivos das invasões holandesa e francesa também vieram pro sertão, caravanas de ciganos. O mundo deu muitos giros, e vieram trupes de saltimbancos, cartomantes, vendedores ambulantes e artistas. Mágicos e atores excursionavam pelos sertões levando espetáculos circenses para divertir o povo, em teatros improvisados, ou mesmo na via pública.

Vamos à história. Naquele sobrado viveu um rico comerciante e sua família – dizia Natan – O senhor Apolinário Fontes Maia, homem influente, casara-se com dona Genoveva Cruz e Souza, filha de ilustre donatário. Tiveram dois filhos, Filadélfia e Felisberto, uma menina e um menino, que tinham à época do dia fatídico, nove e dez anos respectivamente. O dia fatal aconteceu porque o senhor Apolinário descobriu que sua esposa o traia. Enquanto tomava uma bebida no quiosque do velho Quelé, na Rua do Sebo, perto da Cadeia Pública, deixou que uma cigana lesse sua mão, teria sido orientado a deitar cuidados a sua esposa pois segundo a cartomante já não era merecedora de sua inteira confiança. Passou a investigá-la por conta própria. E constataria verdadeira a denúncia da mulher nômade. Sua digníssima esposa, pessoa recatada, respeitada perante a vila e toda parentela estava lhe traindo. Não entendia como sinhá Genoveva que ao menos em aparência o amava e respeitava. Uma madama prendada nos dotes domésticos e na educação da prole. Uma mulher temente a Deus, cultuada nos serviços da igreja. Como ainda assim o traia? Levava pro leito conjugal um jovem, de nome Carlos Floriano, um boêmio, jogador de baralho. Da janela onde estávamos Natan apontou outro sobrado, no outro lado da rua. Diria que naquele, funcionava o Cassino Lira D’ouro, donde o mancebo comunicava-se com a matrona. Desta janela - dizia ele - a madama acenava furtivamente com um lenço pro amante. A depender da cor, ele poderia, ou não, vir na calada da noite, para o encontro amoroso. Pelos fundos da igreja matriz havia um terreno baldio, por onde o jovem escalava o muro e chegava ao sobrado.

O dia fatídico foi quando o senhor Fontes Maia, enganando a esposa, não viajou a Pão de Açúcar como frequentemente fazia. Retornando ao sobrado naquela madrugada, flagrou os amantes, o rapaz conseguiu fugir completamente despido. Tomado de impetuosa fúria o comerciante investiu com uma faca peixeira contra sua mulher desferindo-lhe dezoito golpes. Filadélfia e Felisberto apavorados partiram pra cima de seu pai para tentarem salvar a mãe, mas vosso pai como em possessão demoníaca desferiu igualmente outros golpes fatais contra as duas crianças. Depois de colocar os cadáveres nas suas respectivas camas. O senhor Apolinário abriu uma garrafa de vinho, pôs o gramofone pra tocar um bolero. Vestiu seu melhor terno marinho, broche de lírio à lapela, calça de linho, sapatos envernizados. Buscou uma corda na dispensa e enforcou-se, no caibro central daquele antigo sobrado.



Fabio Campos

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