Caborés, Jandaias e Falcões

Qualquer um que se inventasse circundar o sopé do Serrote do Pintado, pelo flanco norte, fatalmente ia deparar-se com a fazenda do senhor Abelardo Falcão. A casa grande, uma construção antiga. Coberta de madeira rusticamente aparelhada, arrematada por telhado colonial. Paredes obesas de argamassa e cal, afetadas pelo tempo. Marcas visível ainda com mais nitidez na parte externa. No verão as gigantescas janelas ficavam abertas, para que a brisa do leste, vindo das campinas, pudesse entrar e o a ar circulasse. Vistas pelo lado de fora, as janelas eram como quadros pintados, mostrando, detalhes do interior da casa. Como se cada uma, fosse uma obra em particular, parte de uma obra completa. Rodeado de alpendres, o casarão rememorava com riqueza de detalhes as imensas casas que apareciam nas fitas mexicanas. Redes de punho estendidas, gaiolas de pássaros suspensas nos caibros. Ao lado da casa o curral, donde emanava cheiro adocicado de silagem ruminada e esterco de bovino. Sinfonia de pardais ano inteiro.

Apesar de tudo, de tanta beleza. Um olhar mais acurado, daria pra perceber que havia ali, um quê de tristeza. Um não sei quê de melancolia. Onde estavam as pessoas? Pra onde fora a alegria de outrora? Tão grande casa, abandonada. Ainda que rumores ouvissem pro lado da cozinha, era pouco, pra tão grande casa. Senhor Abelardo e Dona Genaura tiveram doze filhos. O patriarca dos Falcão e sua esposa já haviam desencarnado, embora seus espíritos perambulassem ainda naquela morada. Todas as manhãs - os que ali conviviam – sentiam a presença do Senhor Abelardo, vestido no seu blazer bege, indo pela casa. Andar vacilante, vagaroso, curvado pelo peso dos anos. Sentava-se na sua cadeira de palhinha, ficava na penumbra da sala, contemplando os campos, pelos vão das janelas. Depois sumia pela porta de um dos quartos, ia deitar-se com sua tristeza. Dava pra ouvi-lo tossindo, resquício de tantos e tantos anos de tabagismo. Dona Genaura com leve maquiagem no rosto alvo e gordo. Vestido de estampa colorida inflado de seu corpo. Tiara no cabelo grisalho, sentada à mesa da cozinha, em silêncio, vistoriava os afazeres de Rosalva a velha cozinheira. Os filhos, todos se casaram, se foram, o espírito de sua infância, permanecia ali, vagando sobre os velhos retratos na parede. A algazarra das crianças - ecos de sons longínquos emitidos dentro de um poço - ia indo, em derredor da casa, subindo na goiabeira, nos pés de cajus, tirando maturis, espalhando folhas, brigando pelo balanço de pneu velho. Retratos nas paredes não criam rugas, não embranquecem os cabelos, não se acabrunha diante das moléstias. Apenas as cores esmorecidas, levadas pelas asas do tempo. Daquela ruma de filhos, apenas Clodoaldo permanecera em casa. Fora o escolhido pelos espíritos dos antepassados pra permanecer como guardião do legado dos Falcão.

Naquela família veneração pelas aves era algo que não se restringia apenas ao nome de parentela. A fazenda era um verdadeiro santuário ecológico. Pavões, nambus, rolas e pombas ornavam o terreiro e arredor da casa. Num imenso Grajau mantinha-se um reino de aves canoras: Jandaias, araras, piriquitos, cardeais, maracanãs e toda sorte de aves exóticas. Alguns nem era preciso manter presa, sabiás-laranjeira, Asas-Brancas, João de Barro viviam ali refugiados dos caçadores. Num baixio, um pequeno lago reduto de cisnes, avestruzes, sariemas, garças, patos, gansos, marrecos e outras espécies de aves aquáticas e pernaltas. Algumas espécies devido ao perigo de se tornarem presas fáceis ou agredidas, umas pelas outras, Clodoaldo as criava em cativeiros especiais. Galos de briga criados pra competições em torneios e rinhas. Um mavioso rouxinol, uma tagarela catatua. Canários-do-reino e pitiguaris anunciavam o raiar do dia. O falcão ave símbolo da família bem como Urubus-reis, carcarás, condor e águia de rapina havia ali. Habitando uma gruta de pedra na encosta da montanha espécies que complementavam a cadeia alimentar, morcegos, corujas, bacuraus e caborés.

Caboré foi o apelido que colocaram num negrinho, filho da lavadeira Júlia, que vivia na fazenda. Era encarregado de colocar ração e água pras aves, bem como, fazer a limpeza dos excrementos nas gaiolas. Isso depois de auxiliar o vaqueiro Salviano, no manejo com o gado bovino, pinicar palma nos balaios, dar banho nos cavalos, transportar o leite ordenhado até a cidade, levar a comida dos trabalhadores no roçado. Apesar de seus doze anos de idade, o moleque trabalhava feito gente grande. Um dia, o pretinho esqueceu a gaiola de uma Calopsita no banho de sol, não suportando a ave morreu. Era uma sexta-feira. Dia em que Clodoaldo chegava tarde, pois ia à rua, receber o dinheiro da venda do leite, sempre voltava bêbado. Quando chegou que soube do ocorrido. Pegou o negrinho. Amarrou-o suspenso pelos braços ao esteio do galpão. Deu-lhe uma surra de relho de couro cru. Parando de bater somente depois que o pobre tinha as costas, filetes de sangue. Trancou-o e deu ordem pra ninguém ir lá, até o amanhecer.

Manhã de sábado. Matriz de Senhora Santana repleta de gente. Dia de feira livre sempre fora assim. De mãos postas, olhos fechados, de joelhos, o povo rezava. Gente se encontrando, por entre as bancadas conversavam. Dentro e fora do templo vozerio, admoestando o silêncio do lugar de orações. Tinha os que iam até o altar, atiravam à fronte um Sinal da Cruz - depositavam beijos na barra do forro do altar - rápida genuflexão, e o giro nos calcanhares. Moeda tilintando na caixinha de coleta. Devotas senhoras, zeladoras do Sagrado Coração de Jesus, vestidas de azul marinho, fitas vermelhas ao colo, lenço sobre a cabeça, debulhavam o terço enquanto aguardavam na fila do confessionário. Os que atravessavam o corredor central, em direção a sacristia, iam levando algo nas mãos. Uma galinha, uma dúzia de ovos, um queijo de coalho pro padre Cirilo. Negro major, zelador da igreja, cuidava para que as pessoas não retirassem as flores que ornavam as imagens. Pagadores de promessas, de joelhos, iam desde a porta até o altar. Acendiam velas. Sentada a uma banca Dona Júlia lavadeira, nas mãos um pequeno embrulho, envolto num paninho branco, um passarinho inerte. Olhar fixo na imagem de Senhora Santana, Dona Júlia. Esperava dois milagres.


Fabio Campos

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