O Mercador de Ilusões (Mateus Cap. 4vs. 1,11)

Lá se ia mais um dia. O sol, feito rodela de fruto alaranjado, submergia em imensa taça de firmamento licoroso. O astro-mor espreitando por entre as brechas das nuvens - enegrecidas no ventre, acinzentadas nos lóbulos - ia se despedindo de Santana do Ipanema. Quebrando o marasmo surgiu um homem - do nada apareceu - caminhando no passeio. Talvez fosse apenas impressão, mas aonde ia passando, ia desbotando as cores das coisas. Como que tornado gélido, fantasmagórico, tudo no mundo. As ninfas, as flores, enfim vencidas, desfaleciam. Tudo ficando com gosto de quaresma.


O homem de quem estamos falando, era um representante comercial, poeticamente, um caixeiro-viajante. Era época de uma Santana, em que os homens trajavam ternos de linho, usavam chapéus Coty, sapatos Passo Doublê. E os rapazes todos, queriam imitar o topete, as longas madeixas e os passos frenéticos do rei do rock’in roll, Elvis Presley. Nosso personagem, teria vindo do interior de São Paulo, filho de imigrantes, de origem judia. Fora criado por seus avós maternos, trazido ainda criança da Polônia. Fugidos da maldita guerra, e do exército Nazista que invadiu seu país. Já haviam se passado trinta anos, desde então. Apresentava-se, nas casas de comércio, pelo nome de Jamil Soinomed. - O que o senhor vende? Perguntou-lhe Seu Artur Cassimiro, o boticário da Farmácia Ébano da Cruz. - Nada! Compro almas.


Sorrindo, Jamil afirmou que teria dito aquilo de brincadeira, pra descontrair. Enquanto retirava da sua maleta de couro, catálogos de perfumaria, amostras de drogaria do laboratório que representava, iniciou-se a contar uma história a Seu Cassimiro. Seus avós havia lhe contado. Seus pais moravam em Varsóvia, quando Hitler invadiu a Polônia com seu diabólico propósito de dizimar o povo Judeu da face da terra. Seus pais foram mortos na câmara de gás, no campo de concentração de Auschwitz Birkenau, no sul da Polônia. E continuou: À época, surgiu um soldado alemão de nome Dantalion Arnon, que inventou uma lista macabra, pretendia exterminar sozinho mil judeus. Queria pra si, o escabroso mérito de ser responsável por enviar mil almas judias pro inferno. Sua abominável Lista seria exatamente uma versão contrária a de Oskar Schindler, que se propôs salvar sozinho, mil judeus. Infelizmente – disse ele - meus pais não tiveram a sorte de entrar na lista de Schindler. Entrariam na maldita lista de Arnon.


Jamil, olhando fixamente pro farmacêutico, de chofre, tacou-lhe a seguinte pergunta: - Seu Cassimiro! O senhor algum dia na vida já passou fome? O sexagenário dono da farmácia, sustando, foi buscar no fundo da memória, algum momento de sua vida em que tivesse sofrido privação de alimento. Na vida familiar, isso nunca ocorrera, pois havia nascido no seio de família abastada. Foi encontrar tal ocasião, na época em que servira o exército, no 20º BC, Batalhão dos Combatentes de Guerra, em Maceió. Por ocasião dos treinamentos, no temido teste de sobrevivência, realmente ali passara fome. Jamil sabia de tudo, nem precisava ouvir a resposta. E inquiriu: - Senhor Cassimiro! Que tal voltarmos aquele momento? E sem que houvesse como explicar. Lá estava o soldado Cassimiro no meio da mata. No lugar da farmácia, selva e calor sufocante, ofegava. Banhado em suor. Trajado na incômoda farda camuflada, os olhos vermelhos, feito brasas queimavam, de sono e poeira. Há três dias sem colocar nada na boca. E Jamil lhe apareceu. Sereno, bem trajado, exatamente como havia aparecido inicialmente. O ambiente árido, influência nenhuma exercia sobre ele. E como se ainda estivessem na farmácia, voltou a indagá-lo: -Então, senhor Cassimiro! Estou ouvindo seus pensamentos! Não é nada bom maldizer ao seu Deus. Afinal, é o Deus a que você tanto teme, e ama...E que lhe deu, essa sua maldita vida! Chega! Vamo-nos daqui.


1 Em seguida, Jesus foi conduzido pelo Espírito ao deserto para ser tentado pelo demônio. 2 Jejuou quarenta dias e quarenta noites, Depois, teve fome. 3 O tentador aproximou-se dele e lhe disse: “Se és Filho de Deus, ordena que estas pedras se tornem pães”. 4 Jesus respondeu: “Está escrito: Não só de pão vive o homem, mas de toda palavra que procede da boca de Deus (Dt. 8,3).


Novamente Jamil e Cassimiro estavam em Santana do Ipanema. Desta feita no alto da torre da Matriz de Senhora Sant’Ana. O velho comerciante estava lívido, tinha medo de altura. Em compensação antes ali, sentindo leve brisa tocando-lhe a face, que o calor da selva. As pessoas, lá embaixo, indo pra suas obrigações, nem se davam conta da dupla de homens encimados na torre da Matriz. Jamil tinha mais perguntas pra Cassimiro, que entendia estar tendo uma espécie de transe. – Seu Cassimiro! O senhor se recorda do dia que tentou ao seu Deus? Artur Cassimiro sabia, não precisava falar bastaria pensar, o estranho homem saberia o que estaria pensando. Voltou aos velhos tempos de estudante, no vigor de sua juventude, apaixonara-se voluptuosamente por uma moça. Seu primeiro (talvez único e verdadeiro) amor. Mas vieram as brigas, e Vanda fez vendaval no seu coração. Entregar-se-ia a bebedeira pra afogar as mágoas, paixão em ruínas. E lá estava Artur, na madrugada, perambulando bêbado sozinho pelas ruas de Santana. O mancebo chegou à ponte da Barragem, estava na iminência de atirar-se dali de cima em baixo. Segurava o balaústre. Os pés apoiados no beiral, pelo lado de fora, o corpo projetado pro nada, pro breu. Não via, porém ouvia, o barulho d’água nas pedras lá embaixo. E no passeio da ponte surgiu outro bêbado. Rindo-se dele, propôs que tomassem uma dose juntos, antes que ele fizesse aquilo. Seria um brinde de despedida. E Cassimiro seduzido pela proposta voltaria ao leito da ponte. E se fora noite a dentro, na companhia do amigo.


5 O demônio transportou-o a Cidade Santa, colocou-o no ponto mais alto do templo e disse-lhe: 6 “Se és Filho de Deus, lança-te abaixo, pois está escrito: Ele deu a seus anjos ordens a teu respeito: eles te protegerão com as mãos, com cuidado, para não machucares o teu pé em alguma pedra” (Sl 90,11s). 7 Disse-lhe Jesus: “Também está escrito: Não tentarás o Senhor teu Deus (Dt 6,16)”.


Jamil transportando o dono da botica pra o alto do Cruzeiro, ainda tinha uma última história pra contar: -Senhor Cassimiro! Sabia que a Polônia, já foi governada pelo senhor? O mercador de drogas estupefato arregalou os olhos. –Sim, Senhor! No século XII seu pai Ladislau I fundou o catolicismo naquele país. Faleceu, e você subiu ao trono, príncipe Cassimiro III. No seu reinado, a Polônia conheceu a prosperidade, mas eu quis testá-lo mais uma vez, e sobre seu povo disseminei a peste negra, milhares morreram por minhas mãos. Outros tantos seriam salvos, pois você já tinha desde aquela época, esse dom para curar pessoas. Você confiava no seu Deus! Pois é meu caro amigo! Está chegando minha hora. Vou deixá-lo. Mas lembre-se estarei todos os dias de sua vida, te espreitando. Jamais, esqueça disso. Tenha uma boa páscoa. E sumiu. Seu Cassimiro, mais uma vez contemplou a Matriz de Senhora Sant’Ana, os telhados das casas, o comércio. Olhou pro alto. Um céu azul, calmo, lhe olhava, calado. Iniciou, sem pressa, a descida do Alto do Cruzeiro. Caminhando calmamente, voltaria pra farmácia.


8 O demônio transportou-o uma vez mais, a um monte muito alto, e lhe mostrou todos os reinos do mundo e a sua glória, e disse-lhe: “ 9 “Eu te darei tudo isto se, prostando-te diante de mim, me adorares”. 10 Respondeu-lhe Jesus: “Para trás, Satanás, pois está escrito: Adorarás o Senhor, teu Deus, e só a ele servirás ( Dt 6,13) 11 Em seguida, o demônio deixou, e os anjos aproximaram-se dele para servi-lo.


Fabio Campos

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