Voa! Maria

A quaresma de então, já dera adeus ao tempo comum. Não tão comum assim. Demoraria ainda algum tempo, antes que a efemeridade do carnaval esvaísse da memória, antes que a inconstância das férias precipitasse no limbo do esquecimento. Havia uma quaresma concebida pelos sinais dos céus - pelas forças emanadas do próprio Deus - descida sobre as coisas da terra do condor. Isso fazia com que a Santana do Ipanema, dos infantes que já haviam jubilado, tivesse sido uma Santana mais mística.

O Ipê-roxo (Tabebuia avelanidae), jamais seria apenas uma árvore. Quis ser uma imitadora de Maria. Entre cardos e moitas de catingueira, lhes viria Gabriel Arcanjo. Cobrindo-lhe a face com sua sombra fez-lhe a anunciação. Era março, dali a nove meses viria à luz do mundo. A Tabebuia avelanidae pondo seu vestido - de perfume e flor lilás - para a festa nupcial, declamaria o Magnificat. Espalhando seu buquê violáceo, por sobre o altar, por sobre o chão do sertão. Enquanto exércitos de Melíponas melíferas, abelhas Mandaçaia (Melíponas melíferas), iam obreiras, voadoras - com o beijo da vida - disseminando o pólen fecundo que já engravidara a Spondia tuberosa, a quem o sertanejo apelidava de Imbuzeiro (Spondia tuberosa). De frutos gomosos cítrico, de caldo acerbo-adocicado, cuja nuança de verde viçoso ia a amarelo cádmio, se oferecia por entre ramos e folhagem. Árvore sagrada do sertão, pelos índios chamada de y-mb-u, “árvore-que-dá-de-beber” de sua tuberosidade. Raiz salvífica! Alva, carnuda, aquosa.

A cada quaresma Jesus vem visitar o sertão. A cada ano - por quarenta dias - vindo reviver aquele momento da Galiléia. E Ele desce à aridez da Caatinga. Assinalando tempo de oração, de penitência, de recolhimento. A sua vinda é amplamente anunciada, rufam os tambores celestiais, a isso o sertanejo chamará de trovão. O exílio do filho do rei faz com que toda a corte celeste caia em prantos. As lágrimas dos anjos, arcanjos e querubins chega-nos, e chamarão de trovoadas. A divisão da trindade Santa é dolorida, todo rompimento o é. O desprendimento ocasiona o que ousarão chamar de relâmpago.

O solo sagrado da mata branca recebe pela quaresma a visita benfazeja do divino Mestre. Parida do ventre da terra, a Carineta faciculata, carinhosamente apelidada de Cigarra (Carineta faciculata), com seu canto estridente anuncia incessantemente que Jesus Cristo o filho de Deus, pés desnudos, caminha por sobre a aridez dos sertões. O Escarabeus sacer escaravelho sagrado - o matuto apelida-o de besouro rola-bosta (Escarabeus sacer), pra que Jesus não viesse a sujar os pés – sai empurrando os excrementos dos bichos pra dentro do buraco. Nuvens negras de, Atta capiguara, nossa conhecida, e tão desejada Tanajuras (Atta capiguara), revoam com seus traseiros adiposos inflados de gordura, tornando-se alvo de caça, dos pardais, andorinhas, sabiás e meninos.

Quaresma é filme que se assiste do fim pro começo, fita de cinema que se vê de trás pra frente. Começa com Cinzas e culmina com fogo! Fogo ardente de Pentecostes. O sertanejo outra vez vai volver seu olhar para o alto, desta vez, buscando não apenas os sinais de chuvas que estão por vir. Vislumbrará o retorno do Messias garantia de vida em fartura. Consegue enxergar se as nuvens que lhes apontaram desde o horizonte, gordas, cevadas de água, se a lua ganhou uma coroa púrpura, se a Rana casteibeiana, a jia negra de papo amarelo (Rana casteibeian), arranhando o fundo do pote, se a Monomorium faraonis, a formiguinha do açúcar (Monomorium faraonis) em caravana, vindo raptar um suprimento de aminoácidos e proteínas, para enfrentar o rigor do inverno na hibernação - pondo o matuto a matutar - se tudo isso é presença do filho de Deus aqui. Agradecido pela visita de Jesus, revive com Ele a dor e a agonia do calvário e vislumbra a alegria, a aleluia da Páscoa. Lúcifer e sua legião de demônios os espreitam. No entanto nada mais podem contra o Filho do Homem.

Supersticioso o sertanejo também sente através das coisas do sertão a presença do príncipe das trevas. A Tyto Alba rasga-mortalha (A Tyto alba) ou coruja de igreja, Devido a seus hábitos noturnos, seu piar agudo semelhante a uma tira de tecido sendo rasgado enquanto sobrevoam as casas, acaba sendo considerada uma ave de mau agouro, ainda mais na quaresma. A Biston betularia, também de hábitos noturnos, é uma borboleta que acabaria sendo chamada de mariposa (Biston betularia). A denominação vem de Maria. As crianças ao vê-la farfalhante invadindo o interior da casa instigavam-na ao vôo gritando: - Voa! Maria avôa! Para em seguida mudarem de opinião: - Pousa Maria! Mariposa!

Na sala de estar da casa tinha quadros na parede. Os retratos de nossos pais, tios e avós, os que já haviam falecido ficavam de um lado, os que se encontravam vivos na parede oposta. Mariposa adentrando a sala por ocasião da quaresma, bom sinal não era. Ainda mais se pousasse sobre a foto de alguém vivo. Maus presságios. Em menos de um ano alguém de nossa família ia morrer.


Fabio Campos

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