A Casa


Ficava a cima do poço do Juá, na margem direita do rio de Santana, o Ipanema. Foi feita no tempo que os mais velhos chamavam de antigamente. À época de erguida era sozinha. Parecia mulher nova, assentada na barranca, na posição de quem vai lavar roupas. Ancas bem apoiadas, os pés quase roçando as águas. 
A edificação tinha a frente virada pra estrada. Toda solta, cercada de jardins. Tinha duas janelas na frente e outras quatro nas laterais. Telhado com quatro águas, área arejada na frente. A tinta velha desbotada deixava-a triste, como se chorasse. O mosaico da fábrica de Zezito ornava o piso, cujos desenhos assimétricos, lembravam os frisos e ornamentos romanos e gregos, muito em voga, a época. A casa sempre pertencera a uma única família os Morais. 
 Construída pelo patriarca Aureliano de Morais. O coronel Morais era pecuarista e comerciante. Latifundiário no tempo que o algodão era o nosso ouro. Produzia e comprava algodão pra revender as indústrias têxteis, Santa Madalena em São Miguel dos Campos e Carmem em Fernão Velho, lá pelos idos de trinta. Por sua influência política, se considerava amigo de confiança, do governador do estado o jurista Osman Loureiro, e mesmo de Getúlio Dorneles Vargas presidente da República do Brasil. Vigorava no sertão a lei da selva branca, sobreviviam os mais fortes. Qualquer que sobrepujasse aos ideais de ganância desmedida dos que detinham o poder, tombariam pelas mãos dos jagunços, por ordem dos coronéis, se fosse considerado seus desafetos políticos. 

 Precavido contra uma possível emboscada de algum dos inimigos que adquirira, na casa, o coronel mandou cavar um túnel secreto, que ia do seu quarto, o calabouço até a beira do panema. A porta secreta ficava no fundo do guarda roupas. Na parede do banheiro, por trás do toucador embutira um cofre de aço. Os pedreiros trabalharam na calada da noite. Pra garantir o segredo, o próprio coronel matou envenenados os obreiros. No dia que terminaram o serviço, com o pretexto de comemorar o fim do serviço, serviu-os vinho com ácido cianureto. Antes haviam cavado duas urnas nas paredes do corredor sigiloso. Sem saber, teriam cavado suas próprias sepulturas. Coronel Morais era um homem mal. Casara-se com uma prima, pelo fato de tê-la estuprado ainda menina. Maria Josefina, doze anos tinha quando se casou, sete filhos tiveram. Coronel Aureliano tratava mal seus empregados, humilhava a todos, com ênfase seus subordinados. Se cometiam falhas, por menor que fosse, pagavam sofrendo castigos cruéis. Aos filhos espancava por motivos banais. A casa era triste. Reinava um silêncio sepulcral, entranhado aos cômodos. Qualquer um que passasse por ali pensaria que a casa era desabitada. 

E o tempo girou a bola do mundo muitas vezes. Sem explicação plausível, o coronel, começou a agir de forma estranha. Talvez estivesse doente, mostrava-se desconfiado de tudo e de todos. Pra ele, qualquer coisa representava uma ameaça a sua integridade física, a sua vida. Não demorou muito, e isso evoluiu pra uma mania de perseguição medonha. O carteiro, o gari, o vendedor de peixe, pra ele, eram agentes secretos da oposição disfarçados. O sexagenário patriarca começou a definhar, e buscar com insistência o isolamento, preferia ambientes escuros. Passava o dia trancafiado no escritório, um dos cômodos da casa, sem querer ser incomodado. Dona Josefina pra não enlouquecer e fugir da depressão preenchia os dias dedicando-se as artes. Compunha poesias, tocava acordeão, desenhava, pintava e tricotava cachecóis e suéteres. 

 Coronel Morais, sentia calafrios, talvez tivesse enfisemas pulmonares adquirido do tabagismo crônico. Sentia fortes dores no abdômen, e um incômodo no baixo ventre. Muito provável que comprometidos estivessem, o fígado pelo consumo de álcool, e a próstata pelos descuidos e abusos sexuais na juventude. Em estado febril, tinha convulsões, sudorese intensa. Em seus delírios revelava segredos dos crimes que um dia cometera. Passou a evitar um cômodo da casa repleto de livros, a biblioteca, o cérebro da casa. Ali tivera visões apavorantes de pessoas a que matara, sentiu-os chegando, vindo vingar-se, em pânico dera gritos horripilantes que vararam a madrugada. 
A sala de estar, aconchegante como um peito, nela pulsava o coração da casa. Tantas vezes a família ali se reunia, ali vivera momentos bons, boas recordações das festas de batizados, primeiras comunhão e aniversário das crianças, os parentes, os compadres, as visitas. Toda manhã, a governanta abria as janelas deixando entrar o ar puro e a claridade do sol, afastando os maus espíritos pra detrás das portas. O jardim florido oxigenava os cômodos, o jardim os pulmões da casa. As janelas se abriam pra olhar. As janelas os olhos, da alma da casa, a tudo viam. Fazia de conta que nada viam. 
A cozinha, o estômago da casa, em três ocasiões a família se reunia ali, em refeições ricas e solenes. À mesa aguardavam o patriarca para a janta. Nada podia contrariar o coronel, não tolerava chegar à mesa sem que todos já estivessem lá o aguardando. Coronel Morais à toalete fazia a barba, na frente do toucador que escondia o cofre, seu reflexo no espelho. A governanta vistoriava as baixelas, as taças de vinho, os talheres, os pratos e as xícaras de porcelana desenhada, os forros e guardanapos brancos, meio amarelados, pela luz da vela. 

De repente um grito apavorante vibrou no ar. De dentro do banheiro atirou-se cambaleante o coronel Morais, completamente nu. Rumou à porta. Um corte profundo no pescoço, deixando pra trás um rastro de sangue. À calçada, caiu morto.

Fabio Campos

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