Negrão dos Cavalos

Antonio acordou-se. Ao abrir os olhos, se perguntou mentalmente, o que aquele cavalo estava fazendo dentro do seu quarto. Belo Zaino, olhando pra ele, a cima da linha de seus olhos. Tão real e tão próximo, que dava pra sentir seu cheiro e sua respiração. Aprumado, sobre quatro patas de puros músculos. Pescoço hercúleo, num meneio de cabeça movimentou graciosamente a crina, ao tempo que trocou de apoio rapidamente. Narinas e olhos dilatados. Esboçou um relincho que seria seguido de empinada das patas dianteiras, o que não aconteceu porque estava amarrado pelo cabresto. Estavam ambos assustados. Ainda mais ambientado, o cavalo assustara-se tão somente porque Antonio havia acordado. 

Percebeu Antonio, que aonde se encontrava não era em seu quarto. Tinha certeza que fora dormir a seus aposentos à casa dos pais. À Praça do Monumento. Afinal onde estava? Tentava recordar o que acontecera na noite anterior. Ao cair da noite, jantara com os pais e irmãos, e após a prosa na calçada, fora todos dormir. E acordara ali naquele lugar estranho. Não havia mais quarto, nem a casa dos pais. Encontrava-se a um estábulo. Era noite. Sem saber como, acordara em meio a cavalos, em baias forradas com capim. Cheiro forte de urina e fezes de equinos misturado ao odor de relva fresca pisoteada.

Ainda mais perplexo Antonio acabou fazendo outra constatação. Ao tocar-se, percebeu que ele próprio, não era ele mesmo. Não era o rapaz de quase vinte anos. Simpático mancebo de tez amorenada, que cursava a oitava série no Ginásio Santana, na turma que ganhara o carinhoso apelido de Oitavão - 80. Número aludido, ao ano em que viviam. Percebeu-se um negro, de meia idade, de quase dois metros de altura, dotado de braços descomunais. Possuidor de mãos gigantescas, com cinco sequazes pinças cada. Capazes de destroçar uma barra de aço, se apertada entre aqueles potentes cinzéis de carne e ossos. Calejadas de duro trabalho. Era madrugada e Antonio aproveitou para andar em derredor.

Precisava saber onde estava. Ao largo que se estendia a sua frente, descobriu uma pequena igrejinha projetando pontuda silhueta, de singela torre ogival, contra o céu negro da noite. Reconheceu, era a capela de Senhora Assunção, logo atrás o Ginásio Santana. De certo, aquele era o velho educandário onde ele estudava, notou que havia soldados fazendo a guarda, em pontos estratégicos do antigo casarão. Antonio tentou ler, muito embora sem conseguir, o letreiro no frontispício do prédio. Descobriu que era analfabeto. Certeza tinha, estava no Largo do Monumento, só que em outra época. No lugar de sua casa, o estábulo. Exatamente onde era seu quarto a baia onde acordara. Em que ano estaria? Um vulto projetou uma sombra no Largo, um homem vestido num capote. O velho Malaquias, vigia da casa do Coronel Lucena, vinha vindo. Cigarro de fumo de corda na boca. Por aonde ia passando ia deixando o rastro de fumo denso, de cheiro acre. Ao se emparelharem, perguntou a negro Bonifácio se estava sem sono. E Antonio acabou por descobrir, que não se chamava Antonio, e sim Bonifácio.

Era ele, o tratador dos cavalos do Quartel da Polícia Militar. Regimento sob o comando do Coronel Lucena Maranhão. Pelotão especial que viera da capital, com a missão de perseguir e acabar com a volante do capitão Virgulino Ferreira, “O Lampião”. Conhecido por toda Santana do Ipanema, o negrão era domador de cavalos. Exímio rastreador de pegadas de gente e de bichos na mata branca. Negro Bonifácio prestava serviços ao coronel Lucena, acompanhando os soldados quando iam fazer batidas pela caatinga. Sua fama atravessava fronteiras. O dom de criar, cuidar e domar equinos selvagens, era coisa de seus antepassados. O gosto pelos cavalos era herança genética. Ainda criança, veio dar nessas paragens, do sertão das Alagoas, vindo do vizinho estado de Pernambuco, numa caravana de negros remanescente de grupos quilombolas que se espalhara pelo sertão, fugidos da guerra de Canudos, na Bahia.

O coronel mandou chamar o negro em seu gabinete e encarregou-lhe de uma missão, teria que ir numa expedição até o raso da Catarina. Ele e mais quatro homens deveriam ir caçar, apreender, e trazer vivo e domado, um potro selvagem. Teria que ser um filhote puro-sangue da raça Crioulo Pantaneiro. O coronel pretendia dar o presente vivo, a uma amante. Uma morena muito formosa, de nome Domitila, filha do fazendeiro Felisberto Quaresma, que vivia numa casa grande na encosta do rio Ipanema, dentro da vasta propriedade do pai, chamada de Fazenda Grota dos Batavos, nas imediações de Poço das Trincheiras. A bela senhora morava com sua filha Maria Isabel uma menina de doze anos.

A expedição do negrão dos cavalos deveria durar um mês. Uma semana ainda faltava para o regresso do preto Bonifácio e cheio de ansiedade o coronel resolveu visitar sua amada. Ao chegar no pátio da fazenda, percebeu que algo estranho acontecera, já era noite. Encontrou Domitila muito triste, sua filha fora vitimada por mordida de cobra cascavel, jazia moribunda. Ia alta a madrugada e o trotar apressado de um cavalo, ouviu-se aproximar-se da Fazenda Grota dos Batavos. O tropel só cessou quando um cavalo esbaforido pelo galope aturdido, esbarrou no terreiro. O cavalheiro lívido e cheio de pressa apeou. Ao se achegar a claridade do candeeiro do alpendre, o coronel o reconheceu, era o negro Bonifácio. Cheio de surpresa o militar quis saber o que seu subordinado estava fazendo ali. Ele disse que viera salvar a menina da morte. Tirando ervas do alforje da montaria, fez dona Domitila macerar e produzir uma infusão, que colocou sobre o ferimento, também fizera a garota ingerir um pouco da mezinha. Não demorou e a febre a deixou. O negrão dos cavalos disse que precisava voltar pra onde havia deixado a caravana, e que em breve chegariam. Montando seu cavalo zaino partiu.

Uma semana depois o coronel Lucena ficou sabendo, que numa batida dos soldados do quartel de Traipu, nas imediações de Floresta do Navio, haviam encontrado o corpo do negro Bonifácio e dos seus quatro companheiros. Todos haviam sido mortos, por uma volante de cangaceiros, ainda quando iam pra caça ao potro selvagem.


Fabio Campos

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