O Conselho da Craibeira

A cidade de Santana do Ipanema, em meados do século vinte, se desenhava nas encostas do rio que os nativos batizaram de nome índigena. As ruas subiam e desciam no relevo escarpados. Da vegetação ganhavam denominações, Rua do Velame, Rua da Barauna. Se inverno enchia o rio, que brincando de pega com os troncos tragados da viçosa e verdejante flora marginal, ia leito afora. No verão lá se vinham os redemoinhos encrencando as crianças na Rua da Poeira, à Rua da Maniçoba. O tangedor de burro, de porta em porta levando nas ancoretas água e canção do tempo da escravidão.

O prefeito Cícero Lutero morava no sopé do serrote da Cajarana. A habitação do administrador público era casa de respeito, construída pelo patriarcado da família. Imponente casarão colonial. Sob muretas, argamassa, suor e sangue, vertido das mãos calejadas dos negros assim se ergueu. Mais de século se passara desde então. Ali mesmo nos arredores da casa do gestor do paço municipal, a velha senzala acabaria virando uma comunidade zulu. De um lado ostentação de riqueza e poder, do outro a miséria a céu aberto, no cortiço prolífero. Todo ano, no dia de Nossa senhora Conceição Aparecida, os rituais de candomblé se agigantava obrigando a madrugada a ficar às claras.


O padre Ursulino Bento morava na cabeça da ponte, sob a foz do riacho Camoxinga. A casa vivia cheia de gente, a uma mesa enorme o padre passava o dia a escrever nos livros de registro da igreja. A todo instante chegava gente, ninguém chegava de mãos vazias, galinhas, ovos, frutas, queijos, bacurinhos, toda sorte de prendas e manufaturas do campo. Doadas ao sacerdote, como prova de afeição e uma pontinha de esperança de verem expiados os pecados. O padre amplamente respeitado muitas vezes humilhava seus fiéis devido aos rompantes de fúria que constantemente o acometiam. Teve uma vez que um larápio na calada da noite invadiu seu quintal para furtar-lhe uma galinha e acabou tomando um tiro de revólver nas nádegas. As abnegadas zeladoras da igreja , se revezavam na preparação das refeições, no asseio da casa, no lavar e passar os paramentos do sacerdote.


O delegado Leônidas Carabina, em hierarquia era o terceiro no poder municipal. Dentre a trindade déspota, o mais execrável. Morava na própria cadeia na Rua do Sebo. Fama tinha várias, jogador de baralho, mulherengo, tomador de cachaça. Crime às costas, muitos havia cometido. Perdera a conta de quantos assassinatos. Veio dar nesses costados, corrido das bandas de Quipapá agreste pernambucano. Acabara por assassinar o próprio pai em uma contenda por herança de terra. Por aqui homiziado na casa do prefeito, sendo por decreto deste nomeado delegado.


O povo de Santana do Ipanema vivia sob a ordem e os caprichos desse tríduo de homens inescrupulosos. Havia uma espécie de empatia, uma comoção coletiva, generalizada e velada. O prefeito odiado, o padre respeitado, e o delegado temido. Sob a lei da ignorância padecia a população. A ganância, a sede de se perpetuar no poder, de controlar a massa de criaturas indefesas e alienada, fascinava aqueles três homens. A tudo controlavam, em tudo eram cúmplices. Havia um pacto de fidelidade mútua entre os três, uma permanente troca de favores de um para o outro, selava o intercâmbio entre os três poderes. 

No meio da praça central da cidade, vistosa craibeira dava sobra e beleza ao passeio. Sob sua frondosa copa havia bancos. Todos os dias, no segundo horário, o prefeito Cícero Lutero, se assentava a praça, inicialmente sozinho. Não demorava muito, e logo iam lhe fazer companhia, o padre Bento e o delegado Carabina, estava formado o conselho. Ali, olhando o povo passar, sem se quer se olhar um para o outro, decidiam os destino do município. Colocavam os assuntos em dia, confabulavam a respeito de tudo, as notícias chegadas da capital, quem ia casar ou batizar, quem deviam soltar e quem fora preso. 


E eis que um dia, a mando do então governador do estado, coronel Silvestre Péricles de Góis Monteiro para trabalhar no posto de puericultura, chegou a Santana do Ipanema um médico. Antenor Mascarenhas formado pela Universidade de Medicina da Bahia, pra prestar seus relevantes serviços medicamentosos, veio parar no meio do sertão das Alagoas. Achou tudo muito interessante, a beleza rústica do rio intermitente, a vegetação da caatinga, o linguajar do povo, a comida sertaneja. O esculápio se apaixonou pelas coisas do sertão, foi amor a primeira vista. Pelo seu carisma ganhou a simpatia da população. Pela sua dedicação aos pobres, aos humildes, aos mais carentes. Indo muitas vezes visitar pessoas doentes nos mais longínquos varjões, lugares muitas vezes inacessíveis. Iaa pelo prazer de exercer com dignidade seu ofício. A fama da benevolência do clínico obstetra começou a incomodar a tríplice aliança do poder. O conselho passaria a convocar sucessivas reuniões extraordinárias que ocorriam inclusive altas horas da madrugada. A boca miúda comentava-se o ciúme que os três tinham do médico. Havia por parte do trio, um temor velado que nem mais conseguiam disfarçar, se caso o médico pegasse gosto pela política e almejasse destronar o poderoso Cícero Lutero. Era preciso por um ponto final naquela situação incômoda. 


O conselho sabia que precisava frear a ascendência empática do médico para com o povo que até então era mantida sob domínio rigoroso. No banco da praça, um crime foi premeditado, estava decidido, o médico tinha que morrer. Aproximavam-se, os dias das eleições municipais, e aquele tinha o apoio do governador. Além do que, sondado a mando do trio do poder, o médico não descartou a possibilidade de candidatar-se ao cargo de administrador geral do município. O conselho, não via outra alternativa, a não ser eliminar o médico. O prefeito Lutero encarregou o delegado Carabina de ir a Pernambuco contratar três jagunços para executar a vítima. Cada um com uma especialidade de matar, revólver, faca peixeira e espingarda, para descartar qualquer possibilidade de falha. Os jagunços chegaram a noite, no dia do tenebroso plano, haviam sido orientado a irem direto pro cortiço pra casa de um preto velho, por nome Benito Baguê que iria indicar aos algozes quem era a vítima. Banguê que era respeitado na tribo zulu, realizava rituais de macumba e feitiçaria. Odiava o prefeito, pois no passado mandara matar seu filho, que era capataz na fazenda, morto por ter dormido com uma negra empregada do prefeito que lhe servia de concubina. Chovia uma chuva fina, Cícero Lutero não teve a menor chance, ao descer do carro para abrir a cancela da fazenda, recebeu o primeiro tiro de espingarda, os outros dois carrascos se aproximaram e dois tiros de revólver e sete facadas selariam em definitivo o trágico fim do maior líder político dos sertões das Alagoas.


Fabio Campos

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