O ÚLTIMO SÃO JOÃO DE SEU JULIO

Festas juninas, para Zequinha, Bernadete e Salete jamais seriam as mesmas. Depois daquele ano em que Seu Julio e dona Nadir, seus pais, morreram. Ele, no dia de São João, e ela em São Pedro. Trinta anos ficaram pra trás, São João de 82. Voltemos no tempo, pra contar como foi. Naquela época todo mundo acendia fogueira na porta de casa, era uma tradição muito arraigada. Os mais supersticiosos acreditavam que se não acendesse, ao menos um fogareiro na frente da casa, sofreriam algum tipo de sortilégio. Pagariam pela falta, fosse nesse, ou no outro mundo. Os mais velhos brincavam dizendo que o diabo viria mijar na porta de quem não acendesse fogueira. Os meninos se antecipavam a traquinagem do tinhoso, e eles mesmos aplicavam o tal castigo.

Raiada de bandeirolas coloridas, a Rua Professora Josefa Leite, parecia um arraial. Os postes de iluminação ganhavam roupas de palha de coqueiro. As toscas casinhas de Dona Sidone, alugadas a plebe, se enfeitavam de cortinas de alegre xita. A meninada se divertia soltando toda sorte de fogos, traques, beijo de moça, chuvinhas, pirilampos, cobrinhas e diabinhos que teimavam em correr pros pés dos mais velhos, provocando impropérios de irritação. Gatos e cachorros sumiam fugindo dos fogos e dos meninos. A boquinha da noite entre estouro de rojões, as fogueiras eram acesas. O fumaceiro subia ao céu indo se ajuntar as nuvens negras de inverno. A oferenda ao santo subia as alturas, em forma de fumo e fogo. Os móveis amanheceriam cobertos de fuligem, as roupas com cheiro de fumaça. Os idosos teriam agravados seus problemas de bronquite. Os baixios amanheceriam tenros de neblina.

Ao longe o pinicado do triangulo, da zabumba e da sanfona arremedando um baião do velho Luiz Gonzaga. Uma quadrilha desfilava pela rua em carroças de burro, Viva os noivos dizia o tangedor, e todos respondiam: Viva! Meninas trajadas nos seus longos vestidos floridos, chapéu de palha e trancinhas, no rosto, maquiagem espalhafatosa, a demonstrar como as matutas se enfeitavam pra irem às quermesses. Das cozinhas, o cheiro adocicado das iguarias a base de milho, pamonha, cangica, milho cozido, ganhava o mundo e as narinas do povo. À mesa, uma jarra fumegante de quentão, bolo de massa puba, bolo de milho, espigas quentinha de milho verde.

Seu Julio sentado a seu tamborete à porta de casa, fumando um cigarro de fumo picado, permanecia olhando a fogueira. Por hábito mantinha o velho chapéu de massa a cabeça, mesmo já sendo noite. Os vizinhos Tonho e João pintor do lado leste. Loza costureira, Zé do Inhame e Nô soldado do lado oposto. Todos já haviam acendido suas fogueiras, também já adentrados as casas para deleitar-se com o tão farto jantar junino. Seu Julio sem saber direito aonde ia seu pensamento, olhava fixamente pro fogo, talvez pensasse nos seus passarinhos, e o quanto aquela fumaça os incomodava. Crepitava a lenha seca. Estranhou que o fogo permanecia estável, depois de horas, e quase nada havia sido consumido. E de repente ele viu, no meio da labareda alaranjada, uma linda mulher aos poucos foi surgindo. Seria real ou fruto de sua imaginação? Não parecia com ninguém que um dia tivesse conhecido. Quão era bela! Terrivelmente bela! Tinha um longo cabelo preso com um véu a moda cigana. Seu imenso vestido parecia balançar com o movimento do fogo, estava lívida, nenhuma expressão de dor ou aflição se via em seu semblante, o fogo não a corrompia. Seu Julio simplesmente admirado, não entendia porque não tinha medo, nem perturbado o suficiente para qualquer tipo de reação. A mulher saindo do fogo aproximou-se dele.

Sentou-se na calçada ao seu lado. Cumprimentou-o chamando pelo nome. Ela o conhecia, mais que ele próprio. Disse-lhe: Sou a morte Seu Julio. Chegou o seu dia. Perguntou se tinha algo a perguntar. Ele tinha, queria saber, o porquê, tinha só setenta e dois anos, um menino ainda. E logo agora, que Nadir completara sessenta anos e também se aposentara. Agora que os filhos estavam criados. A morte disse-lhe que não havia explicação para o dia, nem a hora que devemos morrer. Simplesmente chegara o dia e pronto. E disse mais, que somente para os homens bons como ele, se apresentava com aquela forma de linda mulher, era uma espécie de recompensa. Para os homens maus, vinha em forma de caveira. com capuz e foice, como na carta de tarô.

E continuou: Eu não existia, Deus me criou porque o primeiro homem foi desobediente. Deus expulsou Adão e Eva do jardim do Éden e pôs um anjo com uma espada para guardar a entrada, era eu. Desde então estou no mundo: No fogo, na terra, na água e no ar. Mato por incineração, por degeneração (sois do pó da terra, e a ela tornarás) por afogamento, por asfixia. Os que morrem por assassinato e suicídio que não deixa de ser uma forma de assassínio, ou de acidente, não são mortes dignas, nesses casos, uma legião de demônios vive no mundo ceifando vidas em meu lugar. As almas dssas pessoas ficam vagando no limbo, um lugar muito pior que aqui na terra dos vivos. Ficarão lá até chegar o dia em que deviam ter morrido. O fogo no mundo dos mortais sou eu a morte, lembra de Sodoma e Gomorra? Já no mundo espiritual represento vida. Lembra da sarsa ardente no deserto vista por Moisés? E de pentecostes, a vinda do espírito santo sobre os apóstolos? O fogo é sagrado Seu Julio, todos os povos o veneram. Na mãe África, os bárbaros europeus e entre os nativos ameríndios.

Seu Julio viu seu velho corpo levantar-se do banquinho, meio grogue, apoiou-se na parede, em seguida entrou para casa, foi até o seu quarto e deitou-se na cama. De mãos dadas com a morte caminhou para dentro do fogo, que não mais o feria, se foram. Dona Nadir desde aquele dia ficou muito triste. Na noite de São Pedro, de luto fechado foi pra novena dedicada ao santo. Na solidão da cozinha, chorou muito cabisbaixa sobre a mesa, nem percebeu um bonito rapaz surgido do nada, de pé, sereno semblante, chamou-lhe: Dona Nadir! Seu dia é chegado! Ela arribou a cabeça sorrindo-lhe.


Fabio Campos

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