LUZIA E A BESTA-FERA

“E fez Deus as feras da terra, conforme a sua espécie e o gado conforme a sua espécie e todo réptil da terra conforme a sua espécie, e viu Deus que bom. Gênesis 1:25"


Era uma vez, uma menina chamada Luzia. Uma menina aparentemente igualzinha as outras de sua idade, mas era só em aparência. Vamos contar essa história justamente pra gente descobrir, em que e porque era diferente. Nascida no seio de uma família prolífera e pobre, a filha de Seu Manoel agricultor, e dona Aparecida dona de casa, morava numa casinha de taipa com mais onze irmãos lá na Maniçoba. Estudava no Grupo Escolar Padre Francisco Correia, ainda às primeiras horas da manhã, saía de casa, só com a benção da mãe, nada no estômago. A farda de blusa branquinha, gravata e saia azul pregueada, e alpercatas nos pés. Quando o rio Ipanema enchia, da sua casa, dava pra ouvir o canto das águas rebentando nas pedras. Por entre os arbustos de catingueira e rasga-beiço. Na encosta da serra da microondas, ecoava as cantigas dos homens que trabalhavam no curtume. Ao longe o balir penoso de uma ovelha e o chocalho plangente, assinalando onde se encontrava o rebanho.

Dona Aparecida era uma pessoa temente a Deus, devota da santa pelo qual levava o nome de batismo, numa das paredes de tapume do casebre, imagens de muitos santos, São Sebastião, Santa Luzia, São Cosme e São Damião. Um grande pôster de Frei Damião de Bozzano com sua imensa barba branca, falando a um microfone. De gesso, as imagens de São Jorge Guerreiro, Nossa senhora Aparecida, Nossa Senhora de Fátima e Padre Cícero. Galhos de arruda num copo de vidro, laçado por diversas fitinhas coloridas, lembranças de visitas a Juazeiro do Norte e Santa Quitéria. Nas sextas-feiras a boquinha da noite, a família reunida rezava o santo rosário, meditando os mistérios da via dolorosa. Recitavam a Ladainha a Nossa Senhora, enquanto uma vela acesa que se consumiria chorando parafina quente, num pires de louça branquinho. Seu Manoel todo ano ia a Juazeiro do Norte, do padre Cícero Romão Batista, pagar uma promessa. Tivera um problema de saúde que quase tiraria a vida. Uma constipação crônica, adquirida no tempo que produzia carvão pra vender, a dois tostões a saca. Levadas em lombo de mula de porta em porta, pelas ruas de Santana.

Foi numa das aulas no Grupo Escolar que Luzia ouviu falar da Besta-fera. Na semana dedicada ao folclore a professora Marinalva Cirilo, dividiu a turma em equipes e determinou que cada uma pesquisasse sobre uma lenda do nosso folclore, Saci Pererê, Curupira, Mula-Sem-Cabeça, O Negrinho do Pastoreio. A equipe de Luzia pesquisaria sobre a Besta-fera. Na Biblioteca Municipal encontraram um livro que descrevia sobre a Lenda brasielira:

“A Besta-fera é uma mistura da Lenda da Mula-Sem-Cabeça e o Lobisomem. Não se sabe ao certo de onde saiu essa terrível criatura. Acredita-se tratar-se do próprio demônio em pessoa que sai das profundezas do inferno em noite de lua cheia, para percorrer as ruas de povoados e pequenas cidades. Eventualmente ele para diante da porta de uma casa. Nesse momento é possível ouvir sua respiração ofegante, coisa do outro mundo. Com frequência arranha as portas e janelas das casas com suas grandes garras afiadas. Dentro das casas as pessoas rezam o Credo para que a besta siga seu caminho. Por onde passa uma matilha de cachorros fugidios a perseguem. Acompanham seu assombroso trote numa algazarra infernal, nos quintais onde encontra um cachorro preso ela para e liberta o animal. Sua jornada termina quando chega a porta do cemitério. Nesse momento emite uma espécie de relincho que se assemelha a um assovio horripilante. É coisa tão pavorosa que alguns dizem tratar-se de uma gargalhada. Um ser fantástico, alguns relatos dão conta de que parece metade fera, metade besta, lembrando o ser mitológico Minotauro. Anda apoiado nas duas patas traseiras, o barulho de seus cascos vindo ao longe, é motivo de mais que suficiente para as pessoas se trancarem dentro de casa.”

Havia no livro, uma gravura da besta ilustrando o texto. Ao ver o desenho Luzia disse aos colegas que já havia sonhado pelo menos uma três vezes com aquela fera. Ao tomar conhecimento de tal fato, a professora Marinalva teria procurado os pais de Luzia e orientado que a levasse a missa do domingo, e que a fizesse confessar-se com o padre Luiz Cirilo. Na sexta-feira daquela semana, Luzia veio a Rua Nova, pra fazer o trabalho escolar com suas colegas. Ao retornar, já era tarde, se encontraria com seu irmão mais velho, Pedro que ficava na praça de São Pedro jogando dominó. Ao chegar no beco do velho prédio do Fomento, Luzia teve a visão.

A Besta-fera envolta numa aura de luz, labaredas de fogo se desprendiam do seu corpo. Era visão pavorosa. Disse a Luzia que era chegada à hora dela ganhar o que merecia. Era dívida de séculos passados. Na idade Média ela, Luzia, teria a expulsado desse, para o mundo das trevas. A besta se referia à santa, a qual a menina levava o nome de batismo, que a teria exorcizado do corpo de um jovem. A maldição teria durado treze séculos. Luzia não tinha escolha tinha que enfrentar sua inimiga, a que vivia a atormentá-la em sonho, agora viera pessoalmente desafiá-la. Luzia trazia no pescoço um santo rosário, benzido pelo padre Cirilo, aquele em que toda boca da noite de sexta-feira, rezava com sua mãe e irmãos. Tirando-o do pescoço partiu o cordão. Enchendo a mão com as contas do terço, arremessou contra a fera. Cada conta virou uma bola de fogo que atingiu a fera em cheio, ferindo-a de morte, mas eis que apenas tombou ainda estava viva! Imediatamente Luzia ergueu o pequeno crucifixo aos céus, e este se transformou numa imensa lança de prata. A menina se adiantando cravou-a no coração da besta, que soltou urros pavorosos, labaredas pelas ventas e expirou. Virou pó e cinzas. No beco vazio, só Luzia, o cheiro forte de enxofre, e a lua por testemunha, no chão repousavam as contas do terço e o pequeno crucifixo de madeira, que Luzia recolheu e levou para refazer seu rosário. Esse encontro está narrado em muitos cordéis, vendido no meio da feira, dia de sábado. Um ditado popular nasceu dessa aventura, quando alguém sofre perseguições e comum se dizer: Acabastes ganhando o que Luzia ganhou no beco.

Fabio Campos

Nenhum comentário:

Postar um comentário