Antonio, ou Amaro? Não sei. Não
sei que nome ele trazia nas certidões batismais. Mas isso pouco importa, não
estamos aqui pra descrever uma biografia, dizer da origem e da trajetória de
uma vida. Viemos aqui falar, apenas falar de um homem. Chamemo-lo simplesmente
Zuza, melhor, Zuza fogueteiro, que era como Santana inteira o conhecia. Uma
figura a um tempo simples e fantástica. Das que só encontramos nos lendários
contos de Christian Andersen. Ele não se apercebia disso, mas criança sim.
Vamos trazê-lo da nossa infância, da infância dos meninos que vivam nas ruas,
nas praças de Santana do Ipanema, da década de sessenta.
Menino do nosso tempo era feito
pras ruas. Pras festas, mormente as festas de rua. As mais esperadas por todos
nós eram as festas religiosas. Garantia de espetáculos de fogos de artifícios.
No mês de julho, Festa de Senhora Santana, na companhia dos pais, tinha que acompanhar
todo o cerimonial da missa. Missa comprida parecia castigo. Com ansiedade,
fosse ou não pecado, desejar o fim da novena. Porém, guardava recompensa. Andar
no meio da festa, passear nos brinquedos, apreciar a queima dos fogos de
artifício. Espetáculo concebido das mãos de Zuza fogueteiro. Depois viria
agosto, com ele a Festa de Senhora da Assunção. O parque de Moacir, que tinha
as Patinhas, brinquedo de meninas, e Barcos, brinquedo de meninos. E sempre na
última noite, o show pirotécnico de Zuza, o artífice dos fogos. Também estaria
presente nas novenas da Maniçoba, do Lajeiro Grande, das Tocaias, da Lagoa do
Junco. A bandinha de pífano desfilaria pelas ruas angariando prendas, nas
portas das casas, no meio da feira, e os foguetes de Zuza, subindo aos céus,
anunciando, convidando para logo mais a noite a quermesse. O que seriam as de Festas
de São João e São Pedro se não fosse Zuza fogueteiro? No meio do povo, as
barracas de quitutes, os brinquedos coloridos, a barraca do leilão, nada teria
a menor graça se não tivesse os fogos de artifício de Zuza fogueteiro.
Zuza não era apenas um
manufaturador de fogos, era um fazedor de sonhos. Aos olhos daqueles meninos,
não apenas impunha respeito por ser gigante em tamanho, mas principalmente pela
arte de suas mãos concebidas. Nosso herói acreditava que a pólvora fora criada
pelos índios. A longínqua China nunca fez parte de seu mundo, a não ser no feitio
do cavaco cilíndrico feito à base de polvilho e fermento, vendido pelas ruas ao
som de um triangulo. Aprendera sua arte, de seus pais, caboclos de Águas Belas.
Nunca usou material feito pela mão do homem, colhia da caatinga os acessórios
pra manufatura dos fogos. Pra fazer foguetes usava junco, vara de bambu,
chumaços de algodão e cera de abelha pra calafetar. Cordão de caruá e fibras de
vime pras amarrações. Pra justificar a
matéria-prima de sua arte, Zuza criou a “Lenda da Pólvora”, dizia:
Os índios que viviam na Amazônia,
de antes de Pedro Álvares Cabral, adoravam Tupã o deus do trovão, que vomitava
fogo pela boca e pelas ventas, em duas ocasiões, se estava com muita raiva, ou se
muito alegre estivesse. O fogo de Tupã descia a terra em forma de relâmpagos. O
trovão seria ele, destruindo as coisas dentro do seu reino, lá nas nuvens. Tupã
encantado com a beleza da índia Iara esposa de Caramuru, a teria roubado,
quando ela se banhava no rio. Iara se lembrava de Caramuru e chorava, seu choro
era a chuva. O fogo da boca de Tupã descia aqui pra terra em forma de raios, ao
atingir o chão transformava-se num carvão negro, formando minas de pólvora. Negra,
se tinha raiva. Se se embriagava com vinho, alegre ficava e os raios desciam
formando jazidas de pólvora branca.
Um dia Zuza teve um sonho. Sonhou
com um homem branco, de paletó. Alto, magro, de bigode, chapéu engraçado, que
diria se chamar Santos Dumont, teria declarado o quanto apreciava sua arte de fogueteiro.
E concordava que fogos de artifício tinham mesmo que subir alto no céu. O show
pro povo ver tinha que ser lá em cima. Mas que ele precisava inovar. E deu-lhe
a idéia de fazer um avião que proporcionasse um espetáculo nunca dantes visto.
Ao acordar, com a ajuda do filho, Zuza conseguiu o desenho. O protótipo do
avião que impulsionado pela pólvora, dava um show de luz, som e cor! Exuberância
de fogos de artifício. Guardava a sete chaves o segredo do silvo produzido pela
propulsão do avião que ia de um poste a outro suspenso por um fio de arame. A
cascata de faíscas coloridas permanecia por um bom tempo ainda. Iluminado a
noite, a festa e os rostinhos alegres das crianças. A meninada, fascinada corria
e corria. Seguiam na direção em que a aeronave partira. E pulavam e brincavam
no meio da fumaça de pólvora queimada, que impregnava o ar, as roupas, as entranhas.
O desconforto estomacal produziria flatulências fétidas, a que os pais chamavam
de “barriga inchada”.
E Zuza tornou a ter outro sonhos. Sonhou com um homem
de longa barba. Vestido em roupas engraçadas, de mangas bufantes. Com uma
imensa boina na cabeça, donde pendia uma pena de águia. Pela descrição, assim genérica,
personagens históricas diversas poderiam ser concebidas. Talvez Júlio Verne,
Nicolau Copérnico ou Leonardo Da Vinci. Teria lhe dado a idéia de fazer um
disco voador. E o disco brilhou na última noite de festa. Subiu levando em seu
bojo, as aventuras, os sonhos, de tantas crianças ali na praça. Jovens e
adultos tornados criança outra vez. Deixando se levar por aquela nave. Numa jornada
intergalática tendo por testemunha a
estrela d’alva, bem ali por cima do serrote da Cajarana.
E vieram outras e mais outras
festas. Teve um ano que Zuza teria dito: -Na última noite de festa de Nossa
Senhora Santana, vou dar um buquê de flores pra minha avó! Ora, todos sabiam
que a avó de Zuza, a muito havia morrido. Como poderia dar-lhe um buquê de
flores? Por acaso pretendia levar uma grinalda lá no Santa Sofia? E logo mais a
noite uma belíssima sequência de fogos que pareciam flores iluminou a noite de
Sant’Anna. Num majestoso jogo de cores, resplandecentes rosas vermelhas,
exuberantes girassóis amarelos e alaranjados, begônias, gerânios e tulipas
belissimamente de tons azuis e violetas. Esplendor de flores se abrindo, se
despetalando por sobre os céus negro noturno, salpicado de estrelas flamejaram
de luz, a imensa torre, os umbrais dos portais ogivais da igreja matriz, da avó
de Zuza, e de todos sertanejos, que ainda agora pedira a ela que derramasse lá
do céu graças mil sobre os nossos sertões.
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