Quando meu filho disse que ia
embora. Naquele instante, lá bem dentro, num cantinho onde dorme a tristeza dos
meus pensamentos. Aquela música da dupla sertaneja veio me embalar. Consolar-me
talvez. Acho que consegui disfarçar, embora os olhos marejados denunciassem-me.
Em questão de segundos, toda uma vida, num relampejo, passou na mente, como um
trailer dum filme. Ali na frente dele, não podia chorar. Pior, tinha que ser
forte o suficiente para incentivar, passar sensação de confiança, de apoio.
Bocado difícil. No nosso excesso de zelo e proteção, nós pais, achamos que os filhos
nunca estão prontos, preparados pra cair na vida. Estarão sempre, terna e
eternamente, a precisar de nós.
À noite, trancado no quarto,
embaixo das cobertas de dormir, o choro veio. Um choro morno, bom de chorar, a
um só tempo contido e desatado. Quis volver no tempo, num retrocesso de vinte e
poucos anos. Lembrei quando sua mãe, em estado gestacional avançado, entrou em
trabalho de parto. Tudo estava devidamente preparado, para àquela hora. Uma
semana antes, bolsa contendo o enxoval. Tudo, premeditadamente organizado, carro
pra levar ao hospital Dr. Arsenio Moreira. A obstetra permitiu-me, assistir.
Antes, havíamos optado em não fazer ultrassonografias. Bom a expectativas, a
surpresa. E foi. No dia quatro de agosto daquele ano, veio ao mundo. Nosso primogênito,
filho amado, um varão, da descendência de Davi, de Israel. Veio encher duas
vidas. Preencher o vazio duma casa, ser luz. Passamos a ser um casal de três, o
que a família um dia almejara.
E agora, eis que estava ali, a
dizer que iria embora, morar com a namorada, em Maceió, num apartamento no
farol. Renunciava o emprego em Santana do Ipanema, sua terra natal. Ia tentar
conseguir ocupação semelhante, na terra do sol, paraíso das águas. Só tínhamos
que concordar. Abençoar aquelas vidas, pedir que Deus colocasse sua mão
protetora selando seus destinos. Afinal, havíamos trilhado caminho parecido.
Agora era a vez dele. E o tempo se encarregou de aplacar nossas angústias,
nossas incertezas. De longe rezávamos, volvíamos nossos olhos a Deus pedindo
por eles, e pra eles, proteção divina.
Um belo dia chegou e disse: - Pai
você vai ser vovô! De novo! Como Deus é bom para com os seus. Antes de vir ao
mundo, ela já sabia que se chamaria Sofia. A ansiedade fê-los descobrir que era
uma menina, antes do parto. Amada, antes de concebida, mais ainda depois. Nove
meses amada, amplamente aguardada. Mesmo nós em Santana, eles em Maceió,
conseguíamos nos transportar pra lá. Em sonho, íamos parar dentro do seu
apartamento e víamos. Belo casal, assemelhado ao casal lá da Judéia. Tudo tão
simples. Cabeça apoiada no ventre de sua amada. Ventre planeta redondo, onde a
única forma de vida habitava o interior. Como se da obra de Antoine Saint-Exupéry
o Pequeno Príncipe cabelos revoltos conversava com Sofia:
-Que quer dizer “cativar”
-Tu não és daqui – disse a raposa – Que procuras?
-Procuro os homens – disse o pequeno príncipe
- Os homens – disse a raposa - têm fuzis e caçam. É
assustador! Criam galinhas também. É a única coisa que fazem de interessante.
Tu procuras galinhas?
-Não – disse o príncipe - Eu procuro amigos. O que
quer dizer “cativar”?
-É algo quase esquecido – disse a raposa. Significa
“criar laços”.
Dentro da barriga da mãe, Sofia
ouvia o pai, que contava histórias só pra ela, e cantava cantigas de ninar,
entrecortadas, pela metade, em ritmo de rock’in roll, a som de guitarra. Dizia
das histórias que lia, e do quanto era aguardada. Dizia do enxoval que estava
sendo preparado com muito carinho, do quarto. Seu quarto, com esmero, por ele
próprio pintado. Um pedaço de céu aqui na terra pra Sofia. Bibelôs,
travesseirinhos - tudo tão minúsculo, como se trazido da “Terra do Nunca” de
Peter Pan, das viagens de Gulliver - Chuquinha de chá, chuquinha de água,
babadores, toquinhas, pares de sapatinhos com cara de coelhinhos. Macacões com
carinhas de ursinhos, e fraldas, muitas fraldas. E Sofia flutuava no seu
planeta de bolha, dormia e sonhava. Ainda não sabia de falsos contos de fadas,
onde Chapeuzinho Vermelho, era do comando vermelho, Branca de Neve na favela
era pó, e dava cadeia. Ainda nada sabia dos vilões, Lobos Maus nos porões dos
poderes, Bafos-de-Onça e Coringas que riam de tudo e de todos. Ainda aprenderia
que o bem sempre, vencia. Sempre venceria. A Mônica, o Cebolinha, Margarida, Mickey,
o Pato Donaldo, também sentia suas presenças. Sabia, estavam lá, nas paredes do
seu quarto, no frasco de colônia, no pacote de fraldas, na toalhinha,
sorrindo-lhe, dizendo: Seja Bem-vinda Sofia!
E Sofia resolveu dar o ar de sua
graça. Escolheu um dia especial. Quis vir ao mundo num dia perto da data natalícia
da mãe. E se o choro do vovô era de emoção, pela boa nova. O de Sofia era pra
dizer, tenho frio, tenho fome, tenho cólica, limpem-me por favor! Estreou a vida daqui de fora, num mês que no
calendário, à muito, começava o ano. Sofia quis começar a dar sentido à vida
daquele casal, que se amavam e a amava, desde antes da concepção. E o pezinho de Sofia, pra sempre foi parar no
braço do papai. Deusa grega, da sabedoria. Veio ser sábia, trazer serenidade,
sabedoria pra um lar. Todo construído, pensado só pra ela. Antes de ser, já
existia. Sofia existia nos planos de Deus. Criaturinha frágil, de colo.
Carecida de toda atenção, todo amor do mundo, carinho pra tomar banho, se
alimentar, arrotar, botar pra dormir. Primeiro álbum de fotos, os primeiros
dentinhos. Mãos desengonçadas, ampliadas de cuidados, manuseando Sofia, como se
de nitroglicerina pura. Mãos aprendendo a paternidade. Experimentando a experiência
do Criador, de ser pai e filho a um só tempo.
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