No Poço das Águas Corredeiras


A menina estava lá. Talvez dez anos, ou dois anos mais que isso. Um pequeno chapéu de rendinha de filó, engomado, pousado a cabeça. Donde por baixo derramava-se, exuberante cascata de negro cabelo liso, que lhe ia ao colo. O vestido alvíssimo quase que tocava as meias brancas suplantadas num singelo par de sapatos igualmente brancos. Parecia estar muito triste. De verdade, triste estava. Sentada a um dos bancos da Praça do comércio de Santana do Ipanema. Olhava... Uma borboleta? Sim era. Uma pequena borboleta de asas amarelas, pousada no encosto de braço do banco. Fixamente olhava. Era uma fria tarde, triste, plúmbea. Havia lágrimas que se derramavam pelo rostinho. Teimosas, caíam, em suas mãos inertes. Demorou-se por um tempo infindável e levantou-se dali. Pôs-se a andar, e era como se a calçada de veludo fosse. O menor barulho, nada se ouvia. O vento, nem o pipilar dos pardais, vozes dos transeuntes, nada. Santana do Ipanema como que deserta. No passeio só a menina. Tendo de vida mesmo, só o inseto alado. Desceram a Rua Barão do Rio Branco. A borboleta borboleteando a menina, indo para além da ponte do padre.

À porta da igreja Matriz de Senhora Sant’Ana belo mancebo, do breu interior surgido. Chapéu de palha, roto nas pontas, às duas mãos. Com leve sofreguidão amassava as abas. Posto à cabeça cobrir-lhe-ia parte do escorrido cabelo negro. A fronte, de tez mais alva. Barba rala a desenhar-lhe a face. Surrada camisa, calça igualmente velha, enrolada ao meio da perna, alpercatas de couro cru. Rosto borrado de fumo denunciava-lhe carvoeiro. Todos os dias, sacos de carvão enchia e rumava pelas ruas a anunciar: “-Olha o carvão!”. Em vão tentara se confessar com o padre Bulhões. O pároco estava em jornada missionária. Se tivesse conseguido, talvez saísse dali menos desolado. O serrote do Cruzeiro por testemunha, calado, de verde esmaecido. Um céu desbotado, de nuvens cheias de angústia, pros lados do Alto da Cajarana. Ampliando-lhe n’alma vontade de morrer, morto estava. Diria ao padre do crime que cometera.

Do que fizera à filha do Coronel Serra Negra. Se o descobrissem, jamais o perdoariam, era melhor dar fim a própria vida. Rememorava o dia fatídico. Era só no que pensara, desde então, por horas, dias, meses, anos a fio. Era só em que pensava. Ao levar o saco de carvão para a dispensa do coronel, outra vez, mais uma vez a viu. A menina deitada à cama, no quarto. Sempre vira, todas as vezes que ali fora, cândida cena. A porta entre aberta. O corpo sob luz diáfana varando a cortina fina, aura rósea, virginal. Perfume de suave fragrância das cobertas fluindo, da intocável flor de lótus, guardada sob a calcinha de algodão e fitas de cianina. Indo o cheiro às aguçadas narinas encarvoadas. Não podia tocá-la, mesmo assim aquele homem o fez. Não podia, ainda mais por ele! Cometia dolo de crime qualquer que o fizesse! Amava a menina, ela nunca poderia saber. Um pecado incrustado a sua carne, sobre a pele, nunca, jamais deveria dali ganhar forma, do consciente sair. Como jamais saíra. A ponto de invadir o quarto da ninfeta, a tocar-lhe os pequenos seios. Não o fez, nunca faria, delirava. Suas imensas mãos desadestradas na rudeza do campo, nunca tocariam a púbis inefável, crime imperdoável! Pecado venial. Sentia ele, merecedor de morte e morte cruel! Por tudo o que vira e desejava não ter visto! O coronel! Não! Não queria acreditar que fosse capaz daquilo! 
  
Coronel Serra Negra, homem talhado no bronze. A sisudez no trato e o caráter ferrugíneo de quando vivera assim retrataram-no à praça. Pelo que representava virou figura no rol dos vultos de nossa história. Figura imorredoura. Tudo pronunciado de sua boca, lei seria. Seus atos, alguns até corriqueiros virados lenda. Causos densamente narrados de roda em roda de conversas de outrora. Diziam de feitos heroicos, de atos bravios na guerra do Paraguai. De medalhas de honra repousando em cofre depositadas. Orgulho de família, passado glorioso. O coronel tivera com dona Domiciana oito filhos, sete varões e a caçula Maria Engrácia, a menina do banco da praça. Coronel fundou em Santana do Ipanema a primeira escola de esgrima. E o primeiro pelotão dos aspirantes a Agulhas Negras das matas e sertões.

A um terreno baldio, por trás da casa do padre encontraram o corpo da menina. Havia dois dias desaparecida. Chovia à dias. O coronel havia suspendido as buscas, ao longo do rio por conta da cheia. Os meninos que voltavam do mato, com alçapões e gaiolas, encontraram-na morta. Um deles viera chamar alguém pra ver. O delegado Bento e o soldado Faustino, esbaforidos chegaram ao local. Os lindos olhos vitrificados contemplavam o céu, o nariz afilado pra lá apontava. A boca entreaberta, como se por ali, tivesse escapado o último halo de vida. O vestido branco, o frágil corpo comprimindo a relva contra o solo negro, úmido. Hematomas no pescoço indicavam que talvez tivesse sido morta por asfixia. Formigas subindo-lhe pelo pescoço e braços, a explorar aquela imensa boneca de pele alva, inerte, levemente rosácea, rica em proteína que se decompunha. Uma borboleta de asas amarelas, como se costurasse no ar uma sinfonia muda, convidou a menina pra passear, e se foram as duas.

Percival, o carvoeiro, estava profundamente perturbado. Estava no poço das águas corredeiras, além do Bebedouro. Na encosta do rio as mulas pastavam. Afogado em pensamentos o rapaz contemplava o torvelinho de correnteza bravia. Buscava sem encontrar, coragem para ataviar os animais. Impor-lhes cargas, e ganhar a vereda que dava pra rua. Coronel Serra Negra partira em seu encalço. Enquanto avançava o cavalo, outro sinistro se delineando, aconteceria em breve. O coronel conjecturava se abordaria o carvoeiro, indagando-lhe sobre o que conseguira ver naquele dia, ou se chegava sacando sua arma e desferindo-lhe os tiros fatais. Estava decidido, não mais importava saber o que vira o carvoeiro. Se o que ele presenciara acabara levando sua filha à morte, também ele teria que morrer. Chegou atirando. Tanto era o ódio que fez o cavalo avançar por pedregulho falso, íngreme. Os projéteis ricochetearam na pedra sem alcançar o alvo. Cavalo e cavaleiro despencaram no precipício. Já o rapaz, dum salto projetara seu corpo ágil no ar. Alçou voo indo parar no ventre do espumante turbilhão d’água sanguineo. Tudo estava consumado. Homens, cavalo, armas, para todo o sempre, selados os destinos. O rapaz à porta da igreja matriz perdido em pensamentos. A menina ao banco da praça brincava com a borboleta. O coronel talhado no bronze, do alto do pedestal contemplava - as pedras que um dia fora - o profundo poço das águas corredeiras.

Fabio Campos   

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