O Menino da Camoxinga

O menino da Camoxinga, ainda mora no meu imaginário. Morar mesmo morava na Camoxinga. A casa ficava além da ponte e do riacho que dividia Santana do Ipanema ao meio. Na ladeira do Cemitério Santa Sofia. Num tempo, tão lá atrás, que nem havia calçamento de paralelepípedo, ladrilhando as ruas, afastadas. E tão pouco era o número de casas, que de cá do Monumento, dava pra ver o alto. E apontando dizia: -A casa que eu moro é aquela, amarela! Tá vendo? Nossos olhos iam pra lá. Um aceno de cabeça pra confirmar. Apenas confirmar, pois era muito provável que nem estivéssemos enxergando a tal casa amarela. E tendo certeza da dúvida, ele fazia questão de descrever como era: -Tem uma área na frente, um portão de ferro, muitas plantas! Com um pouco mais de atenção, talvez desse pra ver, sua mãe, cultivando uma nesga de húmus, que chamava de jardim. E haveria de debulhar um rosário de imprecações, se a bola traquina, dos meninos, fosse esbarrar nas suas plantinhas queridas, velhas amigas com que conversava toda manhã. 

Às vezes fico pensando se tenha existido de verdade, o menino da Camoxinga. Se não teria sido apenas fruto da imaginação. Mas era tudo tão real. Porque meninos são seres de mente muito fértil, capazes de inventar histórias, inverossímeis, inimagináveis. E menino, era o que a gente nunca devia deixar de ser. Mesmo que o tempo se encarregasse de naufragar, lá bem dentro do corpo aumentado, a frívola, a mágica energia dos verdes anos. 

Luiz André era um menino diferente. Jamais entenderei porque, seria necessário gastar quatro decanos de calendários, separando-nos tempo e espaço, pra chegar a tal constatação. Diferentes uns dos outros todos somos. Mas não seria dessa diferença, a que me refiro. Luiz André era um menino azul. Não que trouxesse o anil na tez. Azul cobalto era sua alma, e isso brotava no oceano dos seus olhos. Transparecia no piano do seu sorriso marinho. E mesmo o azul do céu, a brisa vespertina, vinha intrometer-se em seu cabelo liso em desalinho. E de tanto vê-lo trajado no brim da farda do Grupo Escolar Padre Francisco Correia, ficou assim, um menino Azul Cecília Meireles. E numa daquelas magníficas tardes, em que a gente saía da escola, esteve a contar-me mais uma de suas inúmeras histórias fantásticas, que tanto me fascinavam. 

Sentados a um dos bancos da praça, remexendo no que restara dos nossos lanches do recreio. A sua lancheira azul, em alto relevo trazia o desenho do capitão América. A minha, o Homem de Ferro. Observando outros meninos fazendo estripulias nos brinquedos do parque da praça, calmamente disse: -A minha casa é mal-assombrada. Estávamos no final de outubro daquele ano, e remendou: -Por esses dias fica ainda mais mal-assombrada! –Como assim? Quis saber. Com a proximidade do dia de finados, o Cemitério Santa Sofia ficava muito movimentado, o povo ia limpar e ornamentar as catacumbas. As almas dos defuntos, que não tinham ido pro céu, ou pra lugar algum, surtavam. Incomodadas com a presença de tanta gente barulhenta, acabavam por vagar pelas redondezas. Iam perturbar a vizinhança. Derrubavam panelas na cozinha, quebravam pratos na pia. À noite acendiam as luzes dos quartos. Abriam torneiras da pia do tanquinho, do chuveiro. Ligavam ventiladores e o liquidificador. Espalhavam discos pelo chão, punha a vitrola pra tocar. O gato coitado, eles conseguem ver esses espíritos desencarnados, era o primeiro a desaparecer naqueles dias, pois não o deixava em paz. Também o cachorro lá no quintal, latia freneticamente e uivava de modo sombrio. Era como se chorando dissesse: –Socorram-me! Eles estão me perturbando! O próprio André presenciara, numa das vezes que fora acalmar o cão, de lá do breu do quintal, atiraram-lhe uma manga verde, sem que houvesse possibilidade alguma dum ser vivente ter feito aquilo. E os galhos da mangueira balançaram violentamente, ainda que não houvesse o menor resquício de ventania, na noite quente abafada. 

Teve uma vez que estava dormindo, e acordou com alguém lhe chamando, pelo nome. Era voz de um menino. Procurou embaixo da cama, não estava. Revistou os cantos, nada. Abriu o guarda-roupas, encontrou. Um menino bem afeiçoado, bonito. De cócoras todo molhado, a roupa colada ao corpo, tremia de frio. Os cabelos castanhos, lisos, molhados, escorridos na testa. Os olhos grandes, de longos cílios, pareciam ainda maiores, arregalados. Disse que tinha medo. Medo de um homem muito mal que queria lhe fazer algo muito ruim. Disposto a ouvi-lo, sentou-se ao seu lado. Ouviu-o contar que o homem mal era seu tio, que havia perdido os pais, num acidente de carro. Por isso foi morar no sítio, com o irmão de seu pai, mas a esposa dele odiava-o, lhe batia, chamava-o de afeminado. Um dia o tio, que era alcoólatra, encontrou-o a buscar água no açude, arrastou-o pro mato, e abusou sexualmente dele. Pra ter certeza que não contaria a sua esposa, afogou-o. Também pra parecer que tinha sido ele mesmo que se afogara. André e Augusto ficaram amigos, e combinaram uma vez por ano se encontrarem. Dia de finados, seria o dia. 

Muitas outras histórias seriam compartilhadas, bem como, muitos outros momentos bons. Nos banhos do rio Ipanema. Tantas foram as vezes que juntos a uma tropa de meninos, na maior algazarra, ia, rumo pra além da Maniçoba. A um lugar chamado “Escondidinho”. Chegavam ao início da manhã. Escalavam rochedos pra se atirar perigosamente no turbilhão das águas bravias. Desafiando todas as leis do universo, o mundo era daqueles meninos. E se o gasto energético ocasionava a fome, saiam à cata dos umbuzeiros, tubérculos, frutos e mesmo folhas. Ao aproximar-se a hora de deixar o “velho” amigo ficavam todos nus. Estendiam os calções para enxugar ao sol. E pareciam um bando de índios. E ficavam excitados e masturbavam-se, sem precisar recorrer à visão de uma vulva feminina, só por puro prazer. Uma outra versão da Terra dos Meninos Pelados, nua, crua, sem poesia, longe de Quebrangulo, distante do sonho de Graciliano Ramos. 

André convidava-me a fazer determinadas estripulias que jamais teria coragem de fazer  sozinho. Roubar uvas no pomar de Doutor Clodolfo, desfrutar os mamões do terreno baldio do Grupo Escolar. Tirar tamarindo, escalando o muro do quintal de Dona Marina Marques. Surrupiar amendoim, um pouco de fubá e farinha de mandioca, dos mangaieiros, no meio da feira. Tomar banho no proibido, açude de Seu João Augustinho, ou na piscina da chácara de Doutor Aderval Tenório. Tentar entrar no circo por baixo da lona, sem pagar. Acompanhar o palhaço no meio da rua, anunciando o espetáculo, pra ganhar um ingresso. Tentar entrar no cine Alvorada, num dia de filme impróprio para menores. Teve um dia que compramos uma garrafa de vinho de jurubeba, meio quilo de salame e alguns pães. E fomos pescar pitu no riacho do bode. Cheguei tarde e levei uma sova de meu pai por isso. Acabei aprendendo a usar o menino da Camoxinga como subterfúgio, atribuindo a ele, as coisas erradas que fazia e eram descobertas. Dizia: -Foi o menino da Camoxinga! Um menino que simplesmente nunca passaria de fruto do meu imaginário. 


Fabio Campos

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