O Sujeito que Matou outro Por Causa de uma Pecha

Essa é a história de como e porque um amigo matou o outro por causa de um apelido. Metódio Calixto nunca foi desses almofadinha saído das entranhas de escritor romancista, que nem sabe o que é sofrer na vida, não foi não. Seu Metódio foi gente de verdade, homem de carne e osso, cabra macho do sertão das Alagoas. Metódio rijo, substanciado. Substancial também, criado com leite de vaca no tempo comum, leite de cabra, no tempo da fartura, e leite de jumenta no tempo das vacas magras, ou mesmo pra tirar uma maleita do corpo. Esse caboclo lanzarino, de quem vos falo, tinha as mãos calejadas, e seus braços eram dois verbos chamados trabalho. 

E quando vinham os dias grandes, de festas. Festa do feijão e da padroeira Senhora Santana. Seu Metódio e a família rumava pra cidade. Nessas ocasiões, punha traje caprichado. Tradição de pai pra filho. O homem colocava um terno de tecido azulão com uma camisa de manga comprida por dentro, uma gravata borboleta, uma flor na lapela. Na cabeça, um Prada enorme. De botas canos longos e espora montava em seu cavalo alazão e puxava o cortejo. Atrás vinha o carro de boi com os filhos e a esposa. Os meninos todos com camisas e calça de tecido dum azul claro, monocromático. Nos pés, alpercatas de couro cru, na cabeça chapéu de couro. A esposa com o filho mais no novo no braço, trajava um vestido de chita, com estampa de flores, uma sombrinha colorida. O eixo cantando, carro de boi avançando, deixando pra trás um rastro de bosta de boi e cheiro de água de colônia. 

Eulâmpio Dorotheu também era homem do campo. Tão real que, se o que a gente escrevesse exalasse cheiro, só em falar dele, daria pra sentir o bodum, entranhado nele, dos bodes e dos porcos que criava. Galinhas de capoeira no terreiro, e se dessem chance entravam de casa adentro. E galinha sabe como é não é? Elas emporcalham tudo por onde passam. Na época da seca, se valia dumas tarefas de palmas que cevava o ano inteiro pra alimentar meia dúzia de cabeça de gado. Um silo de trincheira cheio de forrageira, capim búfeo, capim pangolão e guandu pra aplacar a fome dos bichos. Sua propriedade ficava vizinho a de Seu Metódio. Família numerosa tanto quanto. Se inverno era tudo fartura. Tudo verdinho, verdinho, no aceiro, pega-pinto, pião roxo, catingueira. Os meninos iam tudo na roça colher feijão. Por trás de casa se formavam grotas o que propiciava a semeadura de hortaliças. Esparramava que era uma beleza, tomate, abóbora, melancia. No dia de bater o feijão, os vizinhos juntavam todos os filhos e iam para o terreiro de casa era uma festa. 

Os dois amigos e vizinhos se conheciam desde pequeno. Ali nasceram e cresceram. Herdaram as propriedades dos seus pais. Estudaram na escola isolada de Olho D’água do Amaro, sem que chegassem a concluir o primário. Sabiam ler, malmente escrever um bilhete, porém cubar a área de uma propriedade os dois sabiam. Mas entre aqueles dois roceiros haviam lá suas diferenças. Seu Metódio era organizado pra tudo que fazia, e gostava da limpeza, já Seu Eulâmpio era um jeca, desleixado, e não se importava com a aparência. Isso dava pra notar olhando pra um e pro outro, pra suas casas, pros bichos que criavam e pra roça também. Dava gosto ir até a casa do primeiro, tudo muito simples, pois pobreza nunca foi sinônimo de miséria. As galinhas ficavam presas num Grajaú, o chiqueiro do porco bem cuidado. O curral limpo e a ordenha ele fazia observando toda uma técnica de higiene. Seu Metódio era metido a inteligente, quando recebia a visita do agrônomo do banco deitava conhecimento pra cima do homem. Dizia ele que todos os dias lia a Bíblia. Sempre que os dois amigos conversavam acabavam discordando um do outro. Sempre divergiam de opinião, fosse lá o fosse. Isso vinha desde a infância. Quando eram pequenos lá no pátio do grupo escolar, nas brincadeiras em que havia disputa, eles acabavam brigando. Quando isso acontecia, e sempre acontecia, eles não se intrigavam, porém inventavam apelidos um com o outro. E na primeira ocasião apelidavam-se mutuamente. 

Aqueles homens severos, dados com a lida no campo tinham gosto em comum. Quer ver uma coisa que eles gostavam. Gostavam de corrida de vaquejada, da festa de apartação, de corrida de argola. De correr na pega de boi brabo solto na caatinga. E todo um ritual teria de haver antes de se embrenharem na mata. Um padre desses que gostam de dinheiro, de política e buchada de bode, era trazido pra rezar missa no terreiro da fazenda do prefeito, e recebia entre as oferendas, os paramentos do vaqueiro, chapéu de couro, perneira, peitoral e gibão, corda e chocalho. E em meio ao canto lamuriento do aboio, e o toque do berrante, sorviam grandes goles de aguardente, engoliam nacos de carne assada com farinha e punham um sinal da cruz sobre a fronte. Vida de gado não é adjetivo metido a besta, que vive de boca em boca todo boçal. Vida de gado é objeto direto. Espinho de mandacaru furando a carne, ferro e brasa. Assum preto cego dos olhos, goela seca, poeira vermelha entupindo as ventas, gosto de sangue pisado, na boca. Suor escorrendo na testa e moscas sobrevoando versos e pronomes. 

Tem um ditado que diz que Deus não dorme, e parece que o diabo fica lá longe espiando. E não é que os dois vizinhos se meteram em mais uma discussão e Seu Metódio num rompante de fúria, sem saber como, lembrou-se do apelido que o vizinho tinha na infância: “-Barrão coxo!”. É que Seu Eulâmpio realmente tinha um defeito que o fazia puxar duma perna. Pra ir pra cidade Seu Metódio tinha que passar na frente da casa de Seu Eulâmpio, e como permanecia a rixa, Seu Metódio sempre que passava apelidava o amigo desamigo. Uma semana, quinze dias, um mês e toda vez o apelido. E veio uma manhã de sábado que o homem amanheceu pelo avesso, no momento que o vizinho ia passando que o apelidou recebeu foi o tiro. De espingarda em punho Seu Eulâmpio saiu direto pra delegacia, foi se entregar as autoridades. 

E eis que veio o dia do julgamento. O advogado de Seu Eulâmpio iniciou a defesa caprichando no pronome de tratamento do “Meritíssimo senhor juiz de direito!”. Até aí tudo bem, as formalidades no trato entre os integrantes das causas forenses exigia o protocolo. Ocorreu que o causídico continuou insistindo no pronome tratamentoso, não parando mais de repetir o tal jaculatório. O excelentíssimo senhor juiz, irritado de tanto repetência, do “Meritíssimo”, explodiu aos berros dizendo pra o advogado parar com os comprimentos iniciais, e prosseguir a defesa. Porém o jurisconsulto contra argumentou: “Meritíssimo Senhor juiz! Até o presente momento tudo o que tenho feito foi elogiá-lo, com um pronome de tratamento, que em muito enaltece, o nobre colega. No entanto vossa excelência se mostra profundamente irritado!” E virando-se pro corpo de jurados concluiu. “Agora imaginem senhores jurados, o Meritíssimo senhor juiz, que é um homem versado nas letras, se irritou com palavras polidas que só lhe teciam elogios. Agora imaginem este homem rude, trabalhador rural. Todos os dias apelidado, pelo seu vizinho. Todo dia sendo humilhado, diminuído na sua moral, com adjetivos depreciativos perante sua família. Quantos de vocês aguentariam isso?” Seu Eulâmpio foi absolvido. 

Fabio Campos

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