O Crime do Pé de Trapiá

Quem dera toda infância fosse como a de Florêncio, de certo teria que ter uma árvore. Quando criança Florêncio teve dois casos de amor. Um deles, fora um cajueiro, que nascera no terreno baldio, ao lado do Grupo Escolar Padre Francisco Correia, onde iniciara o primário. Não era cajueiro velho, desses que escritores antigos, de longas barbas e pincinez falavam nos livros, de páginas amareladas e bolorentas, jazidos nas instantes da biblioteca. Longe de ser ao menos parecido com o frondoso pé de laranja lima de Zezé, nem o lenhoso pé de maçã de Alice antes de entrar no país das maravilhas.

Maturi de homem ainda, Florêncio e os colegas de escola, passavam horas arribados nos galhos raquíticos do Anacardium occidentales, que nem porte de árvore tinha ainda. Capengava coitado tendo que sustentar galhos, folhas, frutos e meninos. Embevecidos pelo perfume dos abrolhos e do azeite, catavam os cajus verdes, sugavam como o que, seu caldo adstringente, que desbotavam os dentes, e nodoava de manchas amarronzadas suas fardas. Estreavam o tempo dos cajus em seus frutos temporãos. Lá longe os pernaltas mamoeiros, feito avestruzes, acenavam do alto, pros olhinhos ávidos de lamber os beiços, desejosos da polpa dos Caricas papayas.

Seu Craveiro e Dona Flora eram os pais de Florêncio. Menino pobre, negro. Filho de pais negros, na cor da pele e carapinha. Moravam na Rua do Velame. Seu Craveiro era sapateiro, à sua oficina, na Rua do Sebo, recebia os amigos. Passavam pra cumprimentá-lo, relembrar o tempo da boemia, e discutir futebol, torcedor do Vasco da Gama no Rio. Em Santana do Ipanema torcia pelo Ipiranga. Com maestria consertava calçados, tinha clientela seleta. Costurava as bolas danificadas dos dois times: Ipiranga e Ipanema, também as chuteiras dos jogadores. Maria Yasmim, Maria Rosa, Maria Verbena, Gerânio e Crisântemo, os outros irmãos mais novos de Florêncio.

A menina Isabela, a outra paixão de Florêncio, estudavam na mesma turma. Ela na frente, ele nos fundos da sala. Muito bem ouvia, embora nada entendesse do que a professora dizia, sobre o milho cientificamente chamar-se de Zea may, e o feijão que sua mãe todos os dias punha na mesa, Phaseolus vulgaris. Entendia sim dos cabelos lindos de Isabela, lisinhos, sedosos, e que deles emanava um cheiro adocicado, semelhante ao da flor do pé de cajarana, lá da propriedade de Seu João Augustinho. Isabela menina branca, bonita. Filha única, de família rica, tradicional de nossa cidade, morava na Avenida Martins Vieira, seu pai Doutor Godofredo Wanderley, influente bacharel em Direito.

Dona Flora era dona de casa, pra ajudar no orçamento doméstico, lavava roupas e passava por encomenda. Na casa de Doutor Godofredo, lavava já a muito tempo, trabalhara naquela casa como empregada doméstica, jovem ainda, antes de casar-se com Craveiros. E Florêncio ficava sonhando com Isabela ao ver suas roupas estendidas no varal detrás de casa. Isabela ficando moça as vistas dos seus olhos. Sonhava com os seus seios, duas pequenas peras se projetando sob a blusa. Seu quadril se definindo. Uma vez a professora Carmem levou a turma pra passar o dia as margens do Riacho do Bode. Florêncio feliz da vida ajudou Isabela a subir num pé de manga, e na algazarra dos galhos da mangueira, acabou roubando-lhe um beijo, ninguém viu. Isabela correspondeu-lhe ao carinhoso ósculo furtado. E ficaram cúmplices daquela paixão pueril e proibida.

O redemoinho do tempo rodopiou numa ciranda viva, obrigando os meninos descerem dos galhos, e virem crescer seus bagos, e correrem embora, cuidar da inflorescência das suas vidas e de seus destinos. E o velho amigo cajueiro, esquecido, vendo vir às gotas do orvalho, fazê-lo chorar, de tristeza e de saudade, todas as manhãs. Florêncio foi embora de Santana, foi fazer o curso de técnico agrícola em Satuba. Dali mesmo foi morar em Maceió na pensão de Maria Brito, na Praça dos Martírios. Onde se hospedava a maioria dos rapazes de Santana do Ipanema, que iam pra capital. Conseguiu emprego de balconista numa farmácia de um santanense amigo de seu pai. Por seus esforços formou-se bacharel em Agronomia pela Universidade Federal de Alagoas, talvez a crueldade do mundo arrancando-lhe do coração a ingenuidade, fizera-o esquecer o amor de infância.

Isabela depois que terminou o curso ginasial foi morar em Recife. Tornou-se uma conceituada médica que se casou com um famoso empresário pernambucano do ramo imobiliário. Seu casamento entrou em crise, por motivos de ciúmes dele, também o fato de não poderem ter filhos. Acabaram por se separar. Numa dessas indecifráveis jogadas que o destino dá, moveu as peças no imenso tabuleiro chamado mundo. E Florêncio e Isabela tornaram a se encontrar, em pleno carnaval, nas ruas de Olinda. Voltaram a namorar, e combinaram fazer uma surpresa a família, na festa da juventude, em Santana do Ipanema. E assim o fizeram. Santana do Ipanema em festa, a família reunida na imensa casa da Avenida Martins Vieira, a médica chegou com seu namorado. Apresentou-lhe e anunciou a data do casamento. Tilintaram-se as taças de champanha em um brinde efusivo. Menos o velho patriarca Doutor Godofredo, que retirou-se da sala cabisbaixo, passou despercebido, confundiram com a rabugice da velhice. Florêncio e Isabela foram pra Praça do Monumento apreciar o certame dos automóveis barulhentos. Doutor Godofredo foi até o quintal, não havia mais ninguém ali. Só o velho e a árvore centenária. O velho e o pé de trapiá, seu fiel companheiro de muitos anos. Arranjando uma corda, enforcou-se. Dava sua vida em troca de um segredo, consumido pela angustia, ao ver que um filho seu, sem saber ia casar-se com a irmã.


Fabio Campos

A Casa


Ficava a cima do poço do Juá, na margem direita do rio de Santana, o Ipanema. Foi feita no tempo que os mais velhos chamavam de antigamente. À época de erguida era sozinha. Parecia mulher nova, assentada na barranca, na posição de quem vai lavar roupas. Ancas bem apoiadas, os pés quase roçando as águas. 
A edificação tinha a frente virada pra estrada. Toda solta, cercada de jardins. Tinha duas janelas na frente e outras quatro nas laterais. Telhado com quatro águas, área arejada na frente. A tinta velha desbotada deixava-a triste, como se chorasse. O mosaico da fábrica de Zezito ornava o piso, cujos desenhos assimétricos, lembravam os frisos e ornamentos romanos e gregos, muito em voga, a época. A casa sempre pertencera a uma única família os Morais. 
 Construída pelo patriarca Aureliano de Morais. O coronel Morais era pecuarista e comerciante. Latifundiário no tempo que o algodão era o nosso ouro. Produzia e comprava algodão pra revender as indústrias têxteis, Santa Madalena em São Miguel dos Campos e Carmem em Fernão Velho, lá pelos idos de trinta. Por sua influência política, se considerava amigo de confiança, do governador do estado o jurista Osman Loureiro, e mesmo de Getúlio Dorneles Vargas presidente da República do Brasil. Vigorava no sertão a lei da selva branca, sobreviviam os mais fortes. Qualquer que sobrepujasse aos ideais de ganância desmedida dos que detinham o poder, tombariam pelas mãos dos jagunços, por ordem dos coronéis, se fosse considerado seus desafetos políticos. 

 Precavido contra uma possível emboscada de algum dos inimigos que adquirira, na casa, o coronel mandou cavar um túnel secreto, que ia do seu quarto, o calabouço até a beira do panema. A porta secreta ficava no fundo do guarda roupas. Na parede do banheiro, por trás do toucador embutira um cofre de aço. Os pedreiros trabalharam na calada da noite. Pra garantir o segredo, o próprio coronel matou envenenados os obreiros. No dia que terminaram o serviço, com o pretexto de comemorar o fim do serviço, serviu-os vinho com ácido cianureto. Antes haviam cavado duas urnas nas paredes do corredor sigiloso. Sem saber, teriam cavado suas próprias sepulturas. Coronel Morais era um homem mal. Casara-se com uma prima, pelo fato de tê-la estuprado ainda menina. Maria Josefina, doze anos tinha quando se casou, sete filhos tiveram. Coronel Aureliano tratava mal seus empregados, humilhava a todos, com ênfase seus subordinados. Se cometiam falhas, por menor que fosse, pagavam sofrendo castigos cruéis. Aos filhos espancava por motivos banais. A casa era triste. Reinava um silêncio sepulcral, entranhado aos cômodos. Qualquer um que passasse por ali pensaria que a casa era desabitada. 

E o tempo girou a bola do mundo muitas vezes. Sem explicação plausível, o coronel, começou a agir de forma estranha. Talvez estivesse doente, mostrava-se desconfiado de tudo e de todos. Pra ele, qualquer coisa representava uma ameaça a sua integridade física, a sua vida. Não demorou muito, e isso evoluiu pra uma mania de perseguição medonha. O carteiro, o gari, o vendedor de peixe, pra ele, eram agentes secretos da oposição disfarçados. O sexagenário patriarca começou a definhar, e buscar com insistência o isolamento, preferia ambientes escuros. Passava o dia trancafiado no escritório, um dos cômodos da casa, sem querer ser incomodado. Dona Josefina pra não enlouquecer e fugir da depressão preenchia os dias dedicando-se as artes. Compunha poesias, tocava acordeão, desenhava, pintava e tricotava cachecóis e suéteres. 

 Coronel Morais, sentia calafrios, talvez tivesse enfisemas pulmonares adquirido do tabagismo crônico. Sentia fortes dores no abdômen, e um incômodo no baixo ventre. Muito provável que comprometidos estivessem, o fígado pelo consumo de álcool, e a próstata pelos descuidos e abusos sexuais na juventude. Em estado febril, tinha convulsões, sudorese intensa. Em seus delírios revelava segredos dos crimes que um dia cometera. Passou a evitar um cômodo da casa repleto de livros, a biblioteca, o cérebro da casa. Ali tivera visões apavorantes de pessoas a que matara, sentiu-os chegando, vindo vingar-se, em pânico dera gritos horripilantes que vararam a madrugada. 
A sala de estar, aconchegante como um peito, nela pulsava o coração da casa. Tantas vezes a família ali se reunia, ali vivera momentos bons, boas recordações das festas de batizados, primeiras comunhão e aniversário das crianças, os parentes, os compadres, as visitas. Toda manhã, a governanta abria as janelas deixando entrar o ar puro e a claridade do sol, afastando os maus espíritos pra detrás das portas. O jardim florido oxigenava os cômodos, o jardim os pulmões da casa. As janelas se abriam pra olhar. As janelas os olhos, da alma da casa, a tudo viam. Fazia de conta que nada viam. 
A cozinha, o estômago da casa, em três ocasiões a família se reunia ali, em refeições ricas e solenes. À mesa aguardavam o patriarca para a janta. Nada podia contrariar o coronel, não tolerava chegar à mesa sem que todos já estivessem lá o aguardando. Coronel Morais à toalete fazia a barba, na frente do toucador que escondia o cofre, seu reflexo no espelho. A governanta vistoriava as baixelas, as taças de vinho, os talheres, os pratos e as xícaras de porcelana desenhada, os forros e guardanapos brancos, meio amarelados, pela luz da vela. 

De repente um grito apavorante vibrou no ar. De dentro do banheiro atirou-se cambaleante o coronel Morais, completamente nu. Rumou à porta. Um corte profundo no pescoço, deixando pra trás um rastro de sangue. À calçada, caiu morto.

Fabio Campos

Folhas Secas

Cansadas de viver, se soltavam dos galhos. Caiam forrageiras no chão do sertão, de Santana do Ipanema. Diziam de si, que era outono. Era abril de 32. E lá se vinha ele, arribando o cume das montanhas – preguiçoso, sem pressa nenhuma, fazendo trêmulas as veredas – temível, abrasador, rei sol. Sob um céu escasso de um tudo, de nuvens, de brisa, de passarinho. Carcará revoaria o alpendre da casa, numa tentativa de capturar um pinto.
Pras bandas do nascente ia indo Jacó e Esaú. Potes de barro às costas iam buscar água. Quase três léguas de caminhada. Contornariam o sopé da Serra da Lagoa até chegar ao açude do padre Manoel, nas imediações de Areia Branca. Naquela marcha, ao meio-dia chegariam ao grande manancial de água, que mirava a serra Cabeça Vermelha, a Oeste do mundo. Uma leva de homens, mulheres e crianças, aguardavam a vez de encher suas vasilhas. Carros de boi, muares, jumentos, cheios de ancoretas, barris e tonéis. De tardinha, quando a bola de fogo amuasse, retornariam. Ainda iam, quando encontraram os retirantes. Eram quatro criaturas humanas e um jumento. O cão ia a frente.
O homem franzino em estatura, era pouco de tudo. Cabelo e bigode ralos, trajado em vestes caqui. Tudo que havia encima dele, era gasto de uso. Camisa de manga comprida, um chapéu de couro nodoado de suor nos flancos, roto no cocuruto. Calça de tecido de brim, bolsos fundos. De certo trazia um pedaço de fumo de rolo, palha de milho seca, cortada em quadrículos pra fazer cigarro. Uma minúscula viana. À tiracolo um bizáco com o fundo, reforçado com duas costuras, de lona,. Numa das divisões, havia carne de jabá sapecada na brasa, enterrada na farinha de mandioca. Noutra, atavios de caça, dois pequenos cornos de boi, ocados, com tampa de madeira. Um, tinha pólvora, o outro chumbo. Uma cabaça contendo água de barreiro, presa pelo gogó por um cordel de agave. Dois meninos de olhar astuto. Como se o tempo inteiro caçassem, e fossem também caçados. Camisa e calção de tecido grosso, chapéus de palha. A pele mais azinhavrada que a do pai. A mulher uma cabocla, de longo cabelo negro, encoberto por um pedaço de chita estampada. Na cangalha do jumento, toda sorte de cacarecos. Gaiolas, coxins, esteiras, pote de barro, estrovenga. Entoavam cantiga de romeiro, que ecoava feito lamento nos quatros cantos da caatinga.

“Ô que caminho tão longe meu Deus
Cheio de pedra e areia
Valei-me meu padrinho Ciço e a mãe
De Deus das Candeias”

O retirante atendia pelo nome de Benigno. A ocasião do encontro com os dois buscadores de água, e o sol a pino, fez com que achassem por bem se arrancharem. Se abrigaram debaixo dum pé de umbuzeiro. Os meninos e o cachorro puseram-se a cavar em busca de tubérculo, da árvore aquífera. Jacó, puxando conversa quis saber de onde vinham. Benigno diria, da fazenda Curralinhos, do donatário Teodomiro Craveiros, dono de muitas léguas de terras na encosta do rio São Francisco, próximo a Porto da Folhas. Dissera que haviam saído da fazenda, fugidos de uma emboscada, dum bando de cangaceiros. Antes de atravessarem o rio à canoa, encontraram um soldado baleado com um tiro de fuzil. Agonizante, o militar teria lhe entregue uma encomenda, um pequeno embrulho enrolado com papel bruto, amarrado com barbante que devia ser entregue ao capitão Cornélio Alves, que se encontrava no comando do quartel da vila Roçadinho, nas imediações de Tanquinhos, sertão de Pernambuco. Benigno achou por bem parar por aí sua história, se prolongasse acabaria se denunciando, trazendo à tona outra verdade. Não disse, por exemplo, que estaria armado com um revólver novo niquelado, que tinha bastante munição, e mais de quarenta contos de réis.
Quando a noite já ia alta Jacó e Esaú chegaram aos seus ranchos, trazendo o líquido valioso e muitas histórias pra contar. Os casebres de um, pra o outro distava um lance de olhar. Uma notícia triste aguardava Esaú. Naquele dia durante sua ausência, seu pai falecera. Viveria sua mais longa noite. O raiar do dia chegaria junto com os anuns, feito folhas negras, deslizando pelo diáfano véu acinzentado do sertão seco, à cata dum gafanhoto, dum mangangá. Sem se saber direito de onde vinha, penoso cantar da rolinha fogo apagou, ia se ajuntar ao canto lamuriento das mulheres cantadeiras de velório.

“Sede em meu favor Virgem soberana
Livrai-me do inimigo com vosso valor
Do Egito curador de Raquel nasceu
Do mundo o salvador Maria no-lo deu!”

A Aridez entranhada até os ossos, esturricando as carnes da caatinga. Cândida cena do sertão, que Cândido Portinari pintou, e José Cândido cantou. Os bichinhos, mais do que os homens, sabiam enfrentar os rigores daqueles dias, a cada dia. Benigno chegou ao seu destino. A encomenda finalmente chegaria às mãos do seu destinatário, capitão Cornélio Alves. Ali, a verdade veio à tona. O caboclo Benigno, não era Benigno coisa nenhuma. Tratava-se do senhor donatário Teodomiro Craveiros, dono da fazenda Curralinhos, que fugira da emboscada disfarçado de retirante. O verdadeiro Benigno existiu, e morreu no tiroteio. O coronel fugira com sua esposa e filhos. A encomenda, capitão Cornélio a abriu, na frente dos meninos cheios de curiosidade. Dentro da caixinha de papelão, havia um escapulário de Nossa Senhora das Candeias. Escrito a caneta tinteiro, duas linhas num pequeno bilhete, vincado em três dobras. Quem soubesse ler, lia: “Vai, pelas mãos do meu amigo coronel Teodomiro, este pequeno presente pro capitão Cornélio Alves. Assim que o receber, passe a usá-lo sempre, e terá proteção divina, que o livrará das emboscada dos assassinos. Assina: padre Cícero Romão Batista. Juazeiro do Norte-Ce. 19 de janeiro de 32.”


Fabio Campos