Aloe Vera


Já havia três dias que o céu se fazia nubiloso. Três dias que o astro-rei, não dava o ar da sua graça. Ora chovia uma chuva fina e intermitente, ora torrencial e abundante, castigando Santana do Ipanema. Era manhã de inverno de um ano da década de trinta. Terceiro dia de precipitação consecutiva, Orimídio Bastos, à sua farmácia, na ladeira da Barão do Rio Branco, confabulava:
-Seu Antonio de Campos, costuma dizer, que os meses mais quente do ano são março e novembro,  nesse sertão de meu Deus.  E eu estou a dizer, que o mais chuvoso, sem medo nenhum de errar, é maio. Quando conheço alguém, nascido nessa região, nesse mês, penso logo: -Esse escapou! Não é brincadeira vir ao mundo por aqui num mês desses. Chove tanto! E tem que pedir a Deus pra não adoecer! As estradas com essas chuvas ficam intransitáveis.
Zeca Passaré, o jovem ajudante do farmacêutico, braços apoiados no balcão, apenas ouvia calado. Dedicava-se ao melancólico prazer de admirar a chuva. Olhava, através dela. Seu Bastinho continuava: 
-No livro de Gênesis, depois do dilúvio, Deus prometeu, que nunca mais ia acabar o mundo com chuva. Das duas uma: ou Deus se esqueceu da promessa, ou Santana está fora do mapa do criador, pois já faz três dias que chove! E não é chuvinha pouca não! É chuva dessas que molham com vontade.  Dessas que se a gente for daqui pra ali, sem agasalho, molha até os ossos. Se brincar molha até o pensamento do camarada! As vezes dá a impressão que vai parar,  mas apenas diminui. E torna a engrossar.  O panema está em toda largura!
A cidade tinha cheiro de água barrenta. Do rio, um aroma forte de água nova, cheiro de piaba. As telhas das casas, sobejava gotejante, saturadas de água. As paredes soavam, sem conseguir dispersar em suas entranhas, o excesso de líquido. Os passarinhos de Seu Bastinho, bufos por conta de umidade, careciam de calor solar. Os borbotões de água da chuva nas sarjetas desciam dançantes alegremente pro rio, graças ao declive das ruas aladeiradas. Iam se ajuntar ao braço d’água que os índios batizaram de ypa nema, água ruim de beber.  O riacho Camoxinga feito veia inchada daquele membro, ia dar sua contribuição e tornar ainda mais ameaçadora a cheia do rio.
-Bom dia! Seu Bastinho. Tião mandou avisar pra o senhor ir até a casa dele. Ainda agora mesmo!
O recado chegou na farmácia trazido por Dona Maroquita. A casa de Sebastião Ganga ficava na rua Nova. Já sabia de que se tratava, Sofia a filha asmática de Tião, com certeza tivera mais uma crise. Nesse tempo, não tem jeito piora.
As cores das coisas esmorecem no inverno. Em tempo de chuva os recipientes de vidro embaçam de umidade. As vasilhas de estanho deslizam ao toque dos dedos. Bastinho tem no fundo da farmácia um pequeno consultório. Há ali um pequeno birô abarrotado de objetos: Estetoscópio, medidor de pressão arterial, martelinho medidor de reflexos, lanterninha, bisturi, luvas de borracha e bombinha de inalação. Talões, bulas e receitas médicas. Atrás do birô, uma espécie de bancada com uma imensa variedade de provetas e tubos de ensaio. Potes de porcelana com bastões de socar pra misturar ou obter o sumo de ervas. Numa prateleira acima da bancada diversos depósitos de vidro com tampas todos etiquetados, contendo plantas medicinais. A etiqueta informa o nome popular da erva, o nome científico e data que foi armazenada. Há uma tirada na prateleira só de livros, muitos antigos,de folhas encardidas, todos de capa duras com letrinhas doiradas indicando na lombada o título e autor. A maioria, de temas científico: Anatomia Humana; Plantas medicinais e Puericultura. Na parede um quadro com a efígie do presidente Getúlio Vargas.
Bastinho colocou diversos objetos dentro de sua malinha preta, pegou o guarda-chuva. O aguaceiro dadivoso de Deus continuava sem dar trégua. Saiu dizendo da má sorte de ser boticário num fim de mundo daquele. Resmungava ladeira à fora. Criticava com seus botões, a administração municipal ao atolar o sapato na lama; a Sebastião por exigir tão empreendimento até sua casa naquela ocasião; e de São Pedro reclamava por mandar tanta chuva pra um só lugar por tanto tempo seguido. Podia suspender aquela amostra-grátis de dilúvio, guardar uma parte pra quando viesse um ano seco. Pensando assim chegou ao destino. A porta da casa foi aberta pra dar entrada ao famoso homem das curas de Santana. O homem que abaixo de Deus, salvava dos males que atormentava o corpo. Porque os tormentos da alma isso era lá com o padre Bulhões.
-Bom Dia! Seu Bastinho! A menina está no quarto, vamos entrar...
-Bom Dia Seu Tião. Está vendo? Parece que São Pedro abriu as portas do céu e jogou a chave fora. Nunca vi tanta chuva por aqui, desde que cheguei de Pernambuco. E olhe que faz tempo.
Bastinho examinou a menina e receitou um xarope que ele próprio trouxe da farmácia. Recomendou que se fizesse uma infusão com umas folhas de plantas.
-Faça pra ela um chá com essas folhas de Eucaliptus globulus Labill.
-Isso aqui é eucalipto!
-Eu sei apenas falei o nome científico. Assim que ferver apague o fogo e bote o vapor da vasilha pra ela cheirar isso vai aliviar muito o incômodo. Essa planta possui uma propriedade medicinal muito boa, o eucaliptol, que não pode ser usado com muita freqüência pois pode irritar a mucosa nasal.
Bastinho ainda bem nem tinha encerrado o atendimento a Sofia e chegou um recado pra ir urgente a casa de Dona Genuína, esposa de Seu Sidronio machante, ela havia entrado em trabalho de parto. Não foi sem antes tomar uma xícara de café com as broas de Dona Isaura, a mãe de Sofia, fez questão que ele não saísse dali sem provar.
Quando o farmacêutico saiu ainda caía uma garoa fina, tinha que ir a rua Tertuliano Nepomuceno, mais um santanense estava  pra vir ao mundo por lá. Quando chegou ficou sabendo que Dona Flora parteira havia chegado primeiro. Não achou ruim. Providenciou um fortificante pra parturiente e chá de Melissa officinalis. Isso segundo ele iria ajudar na produção de leite pra criança além de ser um ótimo calmante.
-E onde eu vou encontrar essa tal de Melissa, Melissa o que mesmo?...
-É erva Sidreira Seu Sidrônio! Eu sei que vocês tem guardado folhas dessa planta em casa. Todo mundo tem.
Já ia perto do meio-dia quando retornou a farmácia. Havia uma ruma de gente querendo se consultar com o dono da botica. Um vaqueiro com uma luxação na perna, uma senhora e seu filho com catapora e um rapazote com um dente pra extrair. Esse atendimento levou a tarde inteira. Todos saíram com suas receitas à mão. Numa recomendava um pó anticéptico, um bálsamo e chá de Sambucus nigra “chá de sabugueiro”; noutra indicava um anti-térmico e chá de Jatropha gossypiifolia “chá de Pinhão-rôxo”; na terceira receita um analgésico em comprimidos e chá de Psidium guajava “chá de goiabeira”
Zeca Passaré se inventou de dizer que achava que ia gripar. Seu Bastinho recomendou em cima da bucha:
-Pois cuide de tomar um chá de Menta piperita a popular hortelã-da-folha-miúda, Zeca!
Se ele próprio reclamava de dores nos rins. Prescrevia pra si mesmo:
-Preciso de um chá de Phyllathus niruri!
-E o que é isso Seu Bastinho?
-É o famoso chá de quebra-pedra, meu filho!
Já era noite quando Bastinho se dirigiu a sua residência. Ao descer a ladeira em direção a rua Professor Enéas, um tropel de cavalos ouviu às costas, ignorou pensando que fosse vaqueiros indo tardiamente lá pra o bebedouro. Não era, tratava-se de dois cangaceiros, que o arrebataram e levaram na garupa de um deles. Caía a noite e a chuva continuava. Próximo ao Cachimbo eterno periferia de Santana indo pra Olho D’agua das Flores, eles pararam os cavalos e vendaram seus olhos. Não sabe quanto tempo andou nem pra onde ia. Chegaram ao destino. Sabia que era numa grota, sentiu mato bater-lhe ao rosto. Quando tiraram-lhe as vendas, viu que estava bem no meio da corja do capitão Virgulino. Todos em silêncio o fitavam. Esperavam recompor-se. O capitão encarando-o severamente disse-lhe:
-Seu Bastinho eu tenho um serviço pro senhor.
E mostrando uma tenda improvisada para amparo da chuva indicou-lhe:
 -Tem ali um cabra ferido de morte. Eu quero que salve a vida dele.
Bastinho tentando enxergar no breu, andou até a tolda. Um homem ali jazia agonizante.Verificou o ferimento, era um corte profundo, feito a faca, a altura do peito esquerdo de onde jorrava muito sangue. Um candeeiro de querosene iluminava e enchia a lona de fumaça preta. As sombras tremiam. A chuva permanecia sem parar.
Bastinho olhou envolta do esconderijo, viu muita catingueira e facheiro. Praguejou alto.
-Tanacetum vulgaris e Nerium oleander vocês não me servem!
Tateando no escuro feriu a mão mas sentiu uma imensa alegria por isso. E exclamou:
-Achei você! Aloe vera!
Era um pé de Babosa que procurava, quebrou umas hastes da planta, tirou o gel gosmento de forte cheiro, untou toda a ferida do homem. E esperou um milagre acontecer. Pensava consigo: Com Aloe vera fecharam as feridas de Jesus depois que o desceram da cruz, aloé verdadeiro vai sarar esse desgraçado. O dia amanheceu, o cabra estava escape. Lampião deu ordem a dois homens pra levar Bastinho, recomendando que o matasse num lugar distante dali. Por um tempo andaram a cavalo, finalmente foi jogado num banco de areia e depois o silêncio. Ficou horas amarrado com as mãos para trás, os olhos vendados, formigas selvagens a lhes roer as carnes. Esperava a hora fatal. Ouviu uma voz familiar, alguém se aproximou:
-Oxente Seu Bastinho! Quem peste fez isso com o senhor!
Foi desamarrado e a luz do sol veio bater-lhe nos olhos, doeu mas sentiu um prazer indescritível nisso, que saudade tinha do sol. O rosto que viu era ainda mais conhecido que a voz. Era Passaré que tinha ido na beira do panema urinar e encontrou o farmacêutico seu patrão naquela situação. E voltaram pra farmácia. Orimídio Bastos apesar de cansado sorria. Sorria achando aquele sol, o sol mais bonito do mundo, surgindo por cima da torre da matriz, num  céu azul magnífico lhe devolvia o sorriso.


Fabio Campos

                      

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