O Crime da Rua Tertuliano Nepomuceno

Naquela manhã de segunda feira, amanheceu um homem morto, na rua Artur Morais. O corpo estava lá estendido de bruços no chão quando a polícia chegou. O sangue num filete vermelho escuro, talhado, saía do pescoço, descia e formava uma poça na sarjeta. A chegada da viatura da polícia chamou a atenção. Embora a sirene não estivesse ligada, os faróis giratórios de teto piscavam acesos. Curiosos, crianças e adultos observavam. Os que tinham se afastado se aproximaram com a chegada dos representantes da lei. Os policiais desceram do veículo. Procuravam não demonstrar, mas estavam nervosos. Detestavam àquele tipo de abordagem. Submeteram pessoas a interrogatórios, e poucos se mostravam dispostos a colaborar por medo de se tornarem testemunhas.

O corpo foi recolhido pela própria polícia que levou até à câmara mortuária do Hospital Doutor Arsênio Moreira, a popular sala da “Pedra”. O morto, provavelmente esfaqueado na garganta, jazia num batente de cimento, exposto à apreciação pública. Não havia restrição nenhuma a visitação, os profissionais da imprensa entravam, fotografava e saíam, alguns curiosos permaneciam lá. Era norma adotada pelo hospital, talvez pra facilitar o reconhecimento do corpo pelos parentes da vítima.

Maria das Graças a dona do cabaré, de frente aonde o sinistro ocorrera, os vizinhos do bordel,  Benedito motorista da secretaria de saúde e Manoel, o popular “Bilu”, vigia da Universidade, foram os três, intimados a depor como testemunhas do caso. Gracinha, a cafetina, falou pro delegado que o homem morto era Zé da Burra, era assim que todos o conheciam. Morava na Maniçoba e ia sempre ao seu estabelecimento nos finais de semana. Ficava com as meninas da casa, costumava tomar muitas cervejas e só saía de lá bêbado. Naquele dia, saiu por volta das três da madrugada e depois que ela trancou a porta não viu mais nada. Só escutou momentos depois da sua saída, gritos e barulho de discussões na rua, mas não se atreveu a abrir a porta pra ver o que era.

Paulo, acordou-se  e foi pro banheiro.  Olhava-se no espelho sobre a pia. Cheio de ressaca tentava lembrar-se da noite anterior, olhou pro relógio de pulso. Já ia dá oito da manhã, precisava abrir o bar. No rádio ligado ouviu o locutor falar do achado sinistro, na rua Artur Morais. Lembrava-se aos poucos da noite anterior, fora em vários bares e por último estivera no cabaré de Gracinha. Ao abrir as portas do seu estabelecimento, no qual também morava, na rua Tertuliano Nepomuceno, um carro da polícia estava esperando na porta. Um dos policiais aproximando-se cumprimentou-lhe:

-Bom dia Seu Paulo. Por favor, queira receber este comunicado. Assine, e nos devolva uma das vias.
-Bom dia. Pois não...

Era uma intimação. Bela maneira de começar uma segunda-feira, ainda mais de ressaca. Procurou organizar as idéias. Sabia que tinha a ver com a noite anterior. Temia que tivesse algo a ver com a notícia fatídica do achado macabro, Zé da Burra degolado.   Rebuscava na memória os instantes, antes durante e depois de ter saído de casa, e da sua ida até o Cabaré de Gracinha. A boca amargava, sentia náuseas, tinha sede. Sabia que o estômago rejeitaria qualquer coisa que ingerisse, ainda que fosse só água. Ficou de pé à porta do seu ponto comercial e ouviu duas mulheres que passava comentado:

-Mulher tu viu o que fizeram com o coitado de Zé da Burra?
-Tu foi olhar? Eu não tenho coragem mulher, Deus me livre! Estão dizendo por aí, que foi Sulino Preto virado em lobisomem. Mas já prenderam ele! Está trancado dentro de uma cela sozinho feito bicho enjaulado.     
-Eu fui olhar. Quem fez aquilo tem parte com o diabo! Ele foi mordido na garganta. Sangrou até morrer.

 “O diabo, como possuidor dessa capacidade de apossar-se de corpos e almas com intenções vis, como nós o concebemos atualmente, remota à era medieval, século XI. O mal é conseqüência da desobediência do homem, mas pressupõe-se a participação do diabo colaborando com a tentação. Basta recordarmos Adão e Eva no paraíso, se ali não tivesse presente a serpente tentadora, figura simbólica do demônio, talvez o primeiro casal criado por Deus não tivesse caído no pecado. Mas entra aqui o livre arbítrio concedido por Deus aos homens. Muitos são os nomes e poderes atribuídos ao diabo. É chamado Príncipe das trevas é também chamado de Lucífer que significa anjo de luz. Antes de ser expulso da corte celeste, esteve ao lado de Deus. Satanás não é uma entidade em si. Seria símbolo de virilidade, sexualidade e sensualidade.”

Paulo vive com Verônica, à quase dois anos. Ama ardentemente a sua bela mulher. Sente por ela, um amor possessivo. Conheceu-a numa vaquejada.  Antes de tornar-se dono de bar, era peão de vaquejada, com o dinheiro que conseguiu ajuntar abriu aquele comércio. Namoraram e após o convite, ela topou viver os dois juntos no bar. Entrou no quartinho que ficava atrás da cozinha, Verônica estava ainda deitada na cama, nua. O lençol cobria parte de sua beleza desnuda. Ele percorria com seus olhos toda a extensão de seu corpo, suas curvas belíssima, de pernas bem torneadas, nádegas firmes.  Zé Paulo avaliava aquele corpo de mulher como um comprador de cavalos. O cavalo, nós o concebemos como um lindo animal. Pela sua bela postura. Não importa se domado ou selvagem, se na natureza ou domesticado. Ele tem um poder magnetizante de atrair pra si os olhares de quem dele se aproxima. Não importa se em volta, estejam acontecendo eventos muito interessantes. Ele nos atrai e cobra pra si as atenções de quem estiver em sua volta. Era assim como se sentia aquele peão fascinado, hipnotizado diante de sua fêmea.

Verônica não queria acreditar no que ouvia, quando Paulo falou que estava intimado pra ir a delegacia. Pior ainda, saber que era porque estivera num cabaré na madrugada daquele domingo. Nenhuma relação fez ao incidente da morte de Zé da Burra, com seu companheiro. Pra ela era uma mera e infeliz coincidência. E que logo o mal entendido se resolveria. Ele foi até a delegacia e em suas declarações se contradisse em diversos pontos. Ficou muito nervoso. O delegado declarou-o como um dos suspeitos e aconselhou-o a constituir um advogado. Ficaria “subjúdice”, e novo interrogatório foi marcado pra outra data.

Esclarecedor foi o depoimento de “Bilu” o vigia, ele disse que viu quando Gracinha abriu a porta do bordel para a saída de Paulo e que Zé da Burra se encontrava sozinho na calçada. Disse que os dois estavam muito bêbados e ficaram conversando alto. Sulino Preto vinha perambulando pela rua e Paulo começou a apelidá-lo de lobisomem. Zé da Burra pediu pra ele parar com aquilo, mas Paulo, além de não o obedecer, ainda disse um monte de palavrão contra o mesmo. Zé da Burra com raiva, revelou ali na rua, a alto e bom som, que Paulo era corno, que sua mulher Verônica se relacionava sexualmente com seu filho Beto. Possuído de uma cólera diabólica Paulo avançou contra Zé da Burra e com uma mordida estraçalhou sua jugular. Zé caiu sangrando no chão. E Paulo foi embora cambaleando bêbado. Sulino Preto que vinha andando, apressou o passo e parou onde Zé estava caído. E pondo a mão no ferimento tentou estancar o sangramento. Foi aí que Benedito abriu sua porta e viu o mendigo segurando Zé da Burra pelo pescoço e deduzira que ele o assassinara. Benedito era muito amigo de Paulo, as companheiras eram primas, os dois participavam juntos de farras e festas. Os dois casaram na igreja católica só pra fazerem mais uma festa. Seu depoimento incriminava o negro mendigo, inclusive fez questão de lembrar ao delegado o que todos diziam, que ele virava lobisomem e que tinha parte com o Cão.  
     
“Da mitologia grega vem a designação de Cão, Hades o deus do mundo dos mortos levava as almas humanas até um barqueiro que deveria fazer a travessia passar por Cérbero, o cão de três cabeças. Os chifres, o rabo e os pés de bode, teria herdado de outros deuses mitológicos. Do deus Pã, a metade do corpo peludo. O tridente herdou do deus netuno; No espiritismo não há crença em demônios, mas em seres inferiores e seres evoluídos. Pra nós, quem melhor define a entidade diabólica ou demoníaca, pra os adeptos do catolicismo, é santo Agostinho: Pra ele o diabo é tudo o que não representa Deus: perversidade, apatia, tentação, luxúria, destruição e morte. Deus representando tudo que é luz e o demônio representando tudo que não é luz; A ausência de luz, ou seja, tudo que é trevas.”

Sulino Preto poucos dias depois de preso, praticou o suicídio, enforcando-se na sela da delegacia. Após a ressaca daquele dia, Paulo foi recobrando a memória, lembrou-se pouco a pouco de tudo como realmente tinha ocorrido. Precisava ir a águas Belas sua terra natal, precisava conversar com seus familiares, mas não podia ausentar-se de Santana do Ipanema, estava impedido pela lei. Um pensamento martelava sua mente, a declaração de Zé da Burra sobre o caso amoroso entre o filho dele Beto, e sua companheira Verônica. Seria verdade aquela afirmação? Não queria acreditar. Só tinha um jeito de saber. E preparou uma cilada pra sua companheira. Disse que ia passar a noite jogando baralho na casa de uns amigos no lajedo grande, naquele final de semana. E ficou de tocaia na penumbra do quintal. Não demorou muito e ouviu quando a porta do bar foi aberta para o encontro de infidelidade entre Beto e Verônica.
     
Nem mesmo o filho de Deus, Jesus, foi poupado das tentações do demônio, uma vez estando aqui entre nós. Aproximando-se a hora do calvário foi tentado Por ele quando em quaresma. Foram em número de três, as tentações. A tentação da fidelidade a Deus “transforma pedra em pão”; A de testar a santidade e o poder de Deus “Atira-te daqui do alto”; A do poder “darei tudo se prostrando me adorares”; E Jesus respondeu a ele: Nem só de pão vive o homem, mas de toda palavra que sai da boca de Deus; Não tentarás teu Deus; Adorarás somente a Deus. Não pediu, pois ao diabo não se pede. Ordenou que retirasse de sua presença.

Paulo passou a ser um homem triste, sorumbático. Verônica não mais estava com ele no bar. Se alguém perguntava por ela, dizia apenas:

- Sei lá...Foi embora.

O delegado passou a frequentar o bar de Paulo, pois nunca deixara de ter suas suspeitas sobre ele, tanto com relação a morte de Zé da Burra quanto ao desaparecimento súbito de Verônica. E um dia aconteceu. Estava sentado a uma mesa tomando uma cerveja, e de lá dos fundos do bar veio vindo, um velho cão rabugento que todos conheciam, era o cachorro do finado Sulino Preto. Veio lá dos fundos do quintal e parou aos pés do delegado, trazia na boca uma mão humana, suja de terra, com unhas pintadas de esmalte vermelho. No dedo anular uma aliança com letrinhas bordadas lia-se: Verônica.



Fabio Campos 

Nenhum comentário:

Postar um comentário