Páscoa!


Quaresma, as pessoas ficam mais religiosas por essa época. Fazem-se mais penitências, pagam-se promessas. Pensa-se mais em Deus. A igreja Matriz de Senhora Santana fica, com suas portas abertas praticamente o dia inteiro. Os sertanejos, santanenses, têm a oportunidade de recolher-se naquele lugar sagrado, envolvente, místico. E ter um diálogo com o Altíssimo, pois Igrejas são aqui na terra, janelas abertas pra o céu. Canais de sintonia com Deus. Uma fresta de luz para o alto. Do alto da torre da Igreja Matriz de Senhora Santana, século e meio contempla essa paisagem deslumbrante que se descortina a sua frente. 
A Matriz é uma construção imponente. Inspirada nas grandes catedrais bizantinas do século XI e XII. Em estilo gótico. Aspiração a uma representação material da Jerusalém Celeste. A luz dos vitrais no seu interior, oportuniza ao homem admirar um esboço da glória de Deus, ainda aqui na terra, e ter consciência da sua condição de mortal. As paredes do interior da nave vão libertar-se da mera função de apoio, vão se expandir em altura, permitindo a ideia de amplitude, tornando o espaço gracioso e de uma      leveza extraordinária.

Quinta-feira Santa


Logo mais a noite, tudo far-se-ia luz. Repicava o sino. Suspenso no ar, tilintava o turíbulo, nas mãos do coroinha, lançando perfume de incenso no ar. A última ceia de Cristo era revivida na missa do quinto dia maior. Enquanto o padre seguia o rito de banhar os pés dos doze mancebos, cânticos os envolvia. Maria das Graças, sentada na terceira fileira, tão distante do ato litúrgico. Seu pensamento vagando levava-a a Belém. Via sua mãe Clotildes agonizando, semi-inconsciente. Morria, consumida por um câncer de mama, na fase terminal. Tudo que havia de se fazer, tinha sido feito, agora era só esperar a última hora. Os olhos serrados no frio e alvo leito do hospital. Seu pensamento voou ainda mais. Vinte e tantos anos antes. Ela ainda criança, o pai Dilermano, todos os dias, brigas e mais brigas com sua mãe. Chegava a casa bêbado, quebrando tudo que ia encontrando pela frente. Chorava indefesa, angustiada.



A agonia de Jesus no Jardim do Getsemâni. Dali iria entregar-se a cruz. O suor, o sangue, o pedido pra Deus afastar o cálice amargo. Mas que a vontade do pai, prevalecesse sobre a sua. Maria das Graças era só uma criança. Nada entendia. O porquê de seu jardim destruído. Sua mãe tendo que sair às pressas de casa. Levando apenas ela, e alguns pertences. Entraram num ônibus, viajaram muito. Recordava-se que acabou dormindo de tão cansada e com fome. Adormeceu nos braços de sua mãe. Acordou num lugar estranho, demorou a acostumar-se com o ambiente. Tinha medo. Era um quarto de hotel. Sujo e apertado, tinha só uma cama de solteiro, um criado-mudo. Reconheceu os pertences da mãe. Ela a havia largado ali? Onde estaria sua mãe? Desceu da cama. Foi até a porta, estava encostada. Abriu-a. Havia um corredor, ouviu pessoas conversando. Caminhando descalça, chegou a uma espécie de bar. A mãe estava a uma mesa, conversava com um homem. Não era seu pai. Ambos bebiam cerveja, Clotildes fumava. Chegou sem ser percebida. Puxando-a pela blusa, falou: 


-Mãe! Estou com fome... 

Foi parar no colo do estranho. Ganhou afagos, e uma refeição que só lhe ocorrera consumir, em ocasiões especiais, refrigerante e biscoitos. Noutro dia, seu pai chegou naquela pensão. Nova briga entre eles, e Dilermano a resgataria. Levou-a até a casa de vó Guilhermina, contou tudo o que estava acontecendo, e terminou lhe fazendo um pedido:

-Mamãe, a senhora pode ficar com Maria das Graças...é só por uns dias! Até que eu resolva minha situação.

Dias depois, Dilermano foi embora pro Rio. Clotildes, de lá mesmo, na pensão do interior de Pernambuco onde se encontrava, foi embora pra Belém, sua terra natal. Vinte e sete anos havia se passado. Clotilde nunca mais voltaria a Santana do Ipanema. Nem mais veria Maria das Graças. Algumas poucas vezes, enviaria alguns presentes, por ocasião de seu aniversário. Quando completou doze anos, vó Guilhermina, faria uma viagem ao Rio, pra rever seus primos. Levou Maria das Graças, que reviu o pai. Conheceria novos irmãos, pelo lado paterno. Convidada foi pra ficar, mas não quis. Era muito criança, pra decidir-se sozinha. Ademais os laços afetivos da avó-mãe Guilhermina falaram mais alto, voltaria pra Santana. Naquela quinta-feira a notícia que chegava de Belém, sua mãe estava nos últimos instantes de vida, morria em sua agonia. E Maria das Graças viveu o seu caminho da dor. Viveria assim o seu martírio.

Subúrbio do Rio. Era uma outra Quinta-feira, não tão Santa.


O mancebo escreveu uma carta. Nela dizia tudo o que ia fazer. Entrar na escola que um dia estudara e matar. Mataria doze! Simbolicamente, os doze discípulos, os doze alunos do mestre Cristo, também os que um dia, riram dele. Todos que não acreditavam no que ele dizia. Deus que o perdoasse pelo que ia fazer! Dizia na carta. Exatamente as oito e trinta horas da manhã seria a hora fatal, pois a soma dos números, daria igual a onze. Do dia sete de abril, outra vez onze. Como também o ano, tudo pra aludir ao onze de setembro fatídico em solo ianque. Entraria pelo portão principal, levando uma mochila. Quem ia desconfiar de um ex-aluno entrando numa escola, com uma mochila? Convenceu o porteiro, dizendo que ia pegar o histórico escolar. A câmara do circuito interno registrou, o momento exato que ele, de arma em punho, cruzou os corredores. E entrou em uma sala de aula. Ali atirou em oito crianças. Novamente municiou a arma no corredor e entrou na sala oposta, novos disparos e mais crianças mortas. Doze, o saldo de vítimas. Doze mais um! Jesus e seus doze, todos martirizados. Todos tiveram suas vidas tiradas. Deus os receba em sua glória. Nos degraus do corredor, tombaria pelo fuzil do soldado, o anjo mensageiro da morte. Se a câmara não tirasse de foco, daria pra ler o cartaz pregado à cima de sua cabeça: Feliz Páscoa! Um coelho dentuço segurava um ovo colorido. Corredores, lugar de passagem. Lugar de Páscoa.


Fabio Campos

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