Sanctus Dies Santus


Maximiliano, treze anos tinha. Menino com nome de gente grande. Morava no conjunto habitacional Alto da Boa Vista. Nome bonito, vista bonita. Apelido feio: Favela da tripa. Da sua casa via-se o belo santuário de Nossa Senhora de Guadalupe, o arrojado prédio do Fórum da Justiça Desembargador Hélio Cabral de Vasconcelos. 
Antes, vivera na rua da praia. Sua mãe, ele e mais seis irmãos, numa casinha de taipa. Até que veio a última grande cheia do rio Ipanema, e tiveram que ir praquele cortiço, ao lado da Universidade Estadual. A casa ali era melhor, mesmo assim tinha saudade da antiga morada. Era domingo de ramos, ia o cortejo pelas ruas de Santana do Ipanema. Com folhas de palmeira e galhos de tantas outras plantas, ia o povo, acenando hosanas, perfumo de incenso no passeio. Ramos também na favela, diamba passando de mão em mão, fumo fluindo, aroma da Canabis sativa.

No outro dia, Maximiliano decidiu, não iria à escola Padre Francisco Correia. A professora de religião pedira, pra cada um, comprar, alguns enfeites pra páscoa da escola. Nada havia comprado, não tinha dinheiro. Foi até a banca de Cds e Dvds de seu primo, em frente à matriz de Senhora Santana. Pediu a Tiago, algumas mídias pra vender aos colegas, ganharia comissão. Pedro um de seus amigos compraria, só pra ajudá-lo. O filho do dono de um dos barracos à cabeça da ponte, Recanto da Amizade, era apreciador daquele tipo de diversão. Gostava dos jogos videogames e filmes de Sexo Explícito. Venda garantida. Nas primeiras horas da tarde, Tiago e o primo, desmontaram a banca, desceram pela rua professor Enéas, guardariam os pertences, e de lá tomariam outro destino. Iriam a um lugar chamado de “escondidinho”, lá pra bandas dos curtumes, na beira do Ipanema, próximo a Maniçoba. O que iam fazer: Ouvir músicas, tomar banho nos poços formados no leito do rio, fumar pedras de crack. 

Rio Ipanema de cenário deslumbrante. Ainda que fosse verão. Pequenas nesgas de água, poços aqui e acolá. Espelhos dágua, resplandeciam um magnífico azul. Nuvens alvíssimas, num céu parnasiano cobalto! Bailar de cisnes, ora na água, ora no ar. A imponente colina da microondas ao fundo. Distante o balir de ovelhas. A brisa assobiando, cantava música de fina areia esvoaçando no ar. Tudo ali remetia à distante Jordânia. Não seria aquele o místico e sagrado Monte horebe? Não seriam àquelas águas, reflexos do lago Tiberíades? Maximiliano e Tiago deitados na relva, próximo ao areal, entregues aos sonhos e delírios. Lembravam-se de Verônica, a menina mais desejada de sua sala. Ia pra escola, vestida numa sumaríssima saia. Bastava sentar e aquelas pernas, maliciosamente, prendia a atenção deles. Deixada propositadamente à vista daqueles olhos cobiçosos, uma nesga da gruta do amor, contida na lingerie. A fatia triangular de calcinha creme à mostra. Sob a luz ambiente tornava-se turva, deixando transparecer a nuança dos primeiros pêlos púbicos que recobria como relva, seu sexo pungente. Os meninos vagavam em fantasias com aquela visão. Verônica era irmã de Joãozinho, um menino que tinha fama de afeminado. Tiago fez de tudo pra ficar com ele. Numa daquelas idas ao Ipanema João faria amor com eles, depois de uns tragos num cigarro de maconha, soltou a língua. Disse que beijava sua irmã na boca. Disse que apesar dos dois ficarem muito excitados, fazia aquilo, só pra treinar beijos. Ver quem beijava melhor. Não havia desejo sexual entre os dois. Ela sabia que o irmão gostava de homens. Disse que costumavam assistir a filmes pornôs juntos. Pedro perguntou-lhes, se ela toparia fazer sexo a três, como nas cenas mostradas nos Dvds eróticos que assistiam. Ele respondeu que nunca havia perguntado isso a ela. 

Lembrar-se-iam de uma festa que foram na casa do amigo Manoel, próximo dali, na beira do Panema. Num lugar mais abaixo do “Escondidinho”, após o Bebedouro. Voltariam de tardinha, completamente bêbados. Maximiliano entraria numa roça e atearia fogo num milharal seco. O fogo tomou proporções incontroláveis. Atingiu alguns casebres, e ameaçou incendiar a Escola Municipal Senhora Santana. Magnífico! Que fogaréu. Foi sua maior façanha até então. Precisava se superar. Cometer um crime de maior proporção, seria legal. Talvez assaltar garotas quando voltavam da escola, ou arrombar um mercadinho na calada da noite. Motivo pra isso tinha: Impressionar Verônica! Ela um dia deixara escapar que era fã do traficante carioca Beira-Mar. Diria que quando fosse a Maceió iria fazer uma tatuagem no braço, com as iniciais do comando vermelho. Pronto! Ele já tinha um esboço do plano. Também tinha, muito, muito tempo pra planejar. Bem sabia, quando chegasse a hora, ia precisar estar como estava naquele momento. Anestesiado. Como se em outro mundo. Um mundo surreal, de visões fantasmagóricas, de sons inaudíveis. Onde tudo parecia flutuar. Do jeito que estava naquele momento, uma coisa tinha de sobra: Coragem. 

A noite se avizinhava. O sol, cansado da lida diária, ia se deitando devagar, proporcionando um espetáculo de cores, forjadas por Deus. Reclinado sobre o batente da porta de casa, Maximiliano dormiu. Sonhou um sonho em que beijava Verônica. Quando acordou já era noite. Em casa, apesar de rodeado de tantos, sentiu-se sozinho. 

Maximiliano estava lívido, Visível era, o quanto estava perturbado. Dona Denise, sua professora de religião, ali na sua casa. Uma certeza, aquela visita inesperada, tinha a ver com suas faltas às aulas. Sua mãe ofereceu uma cadeira pra ela sentar. Logo ficaria rodeada de crianças. Umas da casa, outras da vizinhança. Distribuiu entre eles, doces e chocolates. Era domingo de páscoa. Chamou Maximiliano pra conversar na frente de casa, gostara da bela vista proporcionada dali, fazia jus ao nome do Conjunto. Os carros passando na pista, ao longe. Ainda ele não recuperara a fala. Mesmo porque nada tinha a dizer. Era todo ouvidos. 

-Então Maximiliano, por que faltou esses dias a escola?... 

-Não tive como comprar os bombons que a senhora pediu. 

-Mas eu disse que não era obrigatório, só era pra levar se pudesse... Ficou com vergonha por não poder?... 
-Foi. 
-Na quarta-feira foi muito bom. Falamos sobre o significado da páscoa. A maioria pensava que é uma festa só pra consumir chocolate.

-E não é professora? 

-Claro que não. Ovos de chocolate é invenção do comércio pra vender. O começo dessa celebração, está na Bíblia, no velho testamento, livro de Êxodo. Vem de muito tempo esta história. Você Maximiliano, é um dos filhos de Deus! Isso foi sacramentado quando seus pais resolveram lhe batizar. Você era muito pequeno, nem se lembra de ter assumido esse compromisso. Mas foi pelo batismo que você se tornou um cristão. A páscoa é uma festa que celebra a libertação dos primeiros cristãos, que estiveram presos, cativos do Faraó, no Egito. Moisés e Abraão foram os responsáveis pela libertação do povo de Deus. Daquela época vem a festa da páscoa. Comia-se, pães sem fermento, com ervas amargas, e carne de carneiro sem sal. E em pé! Nem podia sentar-se, pode? Nós passamos o filme na escola, pena que você não foi. Perdeu, mas posso emprestar-lhe. Muito tempo depois de tudo isso, Jesus Cristo veio ao mundo, pregou o reino de Deus, mas os fariseus os condenaram a morte. Sabendo antes, de tudo o que ia lhe acontecer, Jesus quis celebrar uma nova páscoa. E na última ceia com os doze apóstolos, disse: “Já não precisamos mais matar um carneiro. Eu sou o cordeiro descido do céu.” E deu-se em forma de pão e vinho aos doze, pois sabia que ia morrer crucificado. Jesus morreu numa cruz por nós, por mim e por você Maximiliano! Viu como você acabou perdendo aulas muito importantes? Por isso fiz questão de vir dá-las hoje a você. Em sua casa... 

-Professora, depois que a senhora contou tudo isso, estou ainda mais envergonhado. Tive pensamentos muito ruins por estes dias. Quando acontece festa como essa da páscoa, que a gente não tem como comprar ovos de chocolate, pras pessoas que a gente gosta muito, nem bacalhau e coco pros de nossa casa fazerem um almoço legal, fico ainda mais revoltado. Vontade de fazer besteira! A gente tem raiva, se revolta. Se acha a pior pessoa do mundo, e pensa em fazer coisas ruins. Já odiei tanto meu pai, por ter deixado, eu, meus irmãos e minha mãe sozinhos. 

-Maximiliano! A história que contei sobre Jesus. Pense, como ele também ficou sozinho. Como se sentiu abandonado, Jesus também sofreu tanto, e era tão pobre! Mas tinha uma missão a cumprir, e foi até o fim. A tristeza, às vezes virá em nossa vida, isso é perfeitamente comum. Jesus também se entristecia, porém nunca ficou revoltado. Quando a revolta lhes vier: Lembre-se dele, olhe pra esse céu que nos cobre agora! Saiba que ele está lhe olhando, lá de cima. E se preocupa com você, com cada um de nós. Já é quase noite, preciso ir. Amanhã lhe aguardo na escola. Pra você, e sua família desejo uma Feliz Páscoa!


Fabio Campos

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