A Louca da Estação Rodoviária

O que vamos contar, bem que poderia ter ocorrido em qualquer parte do planeta: China, Egito ou Islovênia, mas aconteceu exatamente em Santana do Ipanema. Quanto às personagens, poderia ser qualquer um de nós, de algum canto do mundo, mas focaremos em três pessoas, outorgando-lhes o direito de nos representar. São estes: Senhor Epaminondas Vieira, o poeta Bené Rosas e Dona Antônia Filomena.

Em que época os fatos ocorrem? Pois bem, o tempo, o inexorável, o implacável senhor tempo. Elemento interessante na definição de qualquer narrativa. Incrível é que aqui, cada antagonista da trama, viveu em determinado espaço de tempo. E a depender das circunstâncias, o tempo de um, pode sobrepor-se ao do outro, e assim sucessivamente. E isso nos parece ser, o que menos importa. Mas também entendemos que tudo é uma questão de ponto de vista. Vamos ao que interessa.

O porquê do senhor Epaminondas Gumercindo Vieira e Souza, vir parar em nossa história, isso temos que esclarecer. Tudo por conta das suas excentricidades. Findou seus dias em meados da década de setenta. Em mil novecentos e setenta e quatro pra ser mais exato. Contava ele, com oitenta e nove anos de idade. Aos sessenta tornou-se ex-funcionário público da Intendência Municipal. Por essa época aposentou-se também da vida matrimonial. Viúvo, vivia sozinho. Viveu uma vida inteira dedicada à coisa pública. Chegou àquela idade e àquela época extemporânea a sua, trajando seu impecável terno e calça de linho, gravata e chapéu coco na cabeça. Era assim, um Carlitos em preto e branco, num cenário de filme colorido. Àquela altura da vida senil, criou pra si uma espécie de rotina, visitava diariamente, uma a uma, todas as casas comerciais do comércio de Santana do Ipanema. A cada comerciante visitado, um assunto de tempos de outrora, trazido à tona. Na loja de tecidos e sapatos de Evilásio, o assunto era o tempo de menino, os jogos de bola, as brincadeiras; no Bar de Seu Lira, o tempo de rapaz, a boemia, as cantigas apaixonadas e as namoradas. No antigo sobrado, Hotel de Maria Sabão, o assunto era as artimanhas da política, os bastidores do jogo do poder dos coronéis. E uma frase, sempre a mesma, prenunciava seu colóquio:
“-No meu tempo...”

Como se ele, não mais existisse. Como se fosse fantasma de si mesmo. Como se do nada, surgisse ali momentaneamente, apenas pra contar aquele fato e logo fosse desaparecer, pra ir habitar uma outra dimensão, um outro mundo. Era exatamente assim como se sentia um ser extemporâneo à época que vivia. Um ser que sentia saudade de tudo que um dia havia vivido. E ainda que remotamente tinha esperança de reviver tudo que um dia vivera.
O poeta Bené Rosas era ainda criança quando Seu Epaminondas exercia a Intendência Municipal e despachava na antiga ladeira da rua da Telefônica. Bené, já havia deixado pra atras a frivolidade dos "áureos anos", porém, nos modos de vestir-se, encarava sem problema a modernidade do jeans e da camiseta do tempo de rapaz. Mas era práxis comentar com tons carregados de nostalgia o tempo de infância e juventude. Bené e Epaminondas eram idênticos, nos jeito extremado de aflorar com supremacia a saudade de tempos idos. Dava gosto ouvi-lo recitando versos, de sua própria autoria, enaltecendo seu torrão natal:

“Ó Rio Ipanema que chora!
Queira Deus que o tempo volte
Para que eu pudesse te contemplar
Ainda menino tantos banhos em ti!
Nasci nas tuas águas
E o tempo que é teu algoz
Que a ti devoras tão feroz
Contigo choro tuas águas, tuas mágoas!”

No dia doze de novembro de oitenta e dois Dona Antônia Filomena amanheceu muito feliz. Seria um dia mais que especial. Seu marido, o pedreiro Benedito Bau, três dias antes, lhe havia ligado, dizendo que naquele instante, estava embarcando em um ônibus, saindo da Estação Rodoviária do Braz, em São Paulo. Seis anos haviam se passado, desde que ele partira, pra o sudeste do país. Partiu deixando Dona Filomena com cinco filhos. Cinco crianças que em seis anos, alguns se tornariam rapazes. Já não existiam mais, todos haviam falecido. Uns, ainda na infância, por doenças, outros por envolvimento com drogas ou furtos.


Devido a vida difícil, Dona Filomena teve tuberculose, hipotireoidismo, o que afetou fortemente seu lado psíquico, emocional. Por vezes sonhou com a volta do velho Biu. E muitas vezes, foi vista nas madrugadas, andando pelas ruas chorando e chamando por ele. Morava na rua São Vicente, casinha simples, telhado baixo, duas caídas d'água. Tudo muito pobre, porém limpo que dava gosto. 

Naquele dia, ela arrumou a casa com mais afinco. Aquela velha rede do Cariri que Biu tanto gostava de se deitar e se balançar lavou pra tirar o cheiro de mofo. Vestiu-se de modo especial, botou o vestido com o qual haviam se casado. Um longo vestido branco cheio de anáguas e babados de rendinha de filó. Pôs batom vermelho intenso, nos lábios. O rouge deixou-lhe com cara de calunga de meio de feira. Porém ajudou a esconder velhas rugas, sulcadas feitas rabiscos de arado, no rosto frio. Um rosto desenhado de lágrimas na hora de rezar o terço na fadiga do dia. A tristeza e a solidão acabam por criar cicatrizes na alma. Os cabelos, untou com uma brilhantina que tinha cheiro de água de colônia, daquelas que dão náuseas de tão forte. Se olhando num pedaço de espelho riscado e fosco, esfregou casca de juá, nos dentes tortos e encardidos de fumo. 

Faltava a bicicleta de Biu. A velha Monark, por todos aqueles anos, ficara guardada. Tirou do velho canto de parede. Entrevada rangeu nos cubos e na corrente mordida pela ferrugem. Tirando da penumbra, limpou com carinho. Assemelhando-se a uma amazona dos filmes de sinhazinha montou-a com elegância. Rumou para o desembarque e embarque de passageiros que se vão ou vem pra Santana. Ali chegando uma notícia trágica a aguardava. Ficou sabendo que o ônibus em que o seu Benedito se encontrava, sofrera um grave acidente, já em terras alagoanas, não houvera sobreviventes. Desde então, Dona Filomena, belamente trajada, vai pra Estação Rodoviária de Santana do Ipanema. Todos os dias, chega, em sua bicicleta, consulta o relógio que fica na parede dizendo as horas pra quem lhe olha. Busca o guichê de passagens, se inteira do horário de chegada dos ônibus, revista todos os que chegam. Com os olhos procura os rostos dos passageiros, dos transeuntes. Anda a esmo. Pergunta a um e a outro: Alguém viu o Biu? Resmunga, choraminga. Como se o velho amado fosse aparecer a qualquer momento, chama por ele. Inicialmente baixinho, a meio tom, finalmente aos gritos. Sonha com a volta do Biu.

Fabio Campos

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