O Gato no Espelho

Na décima terceira casa, do lado esquerdo da Rua Nova, em Santana do Ipanema, morava Dona Gertrudes. Hoje seriam apenas dois, os habitantes da casa. Ela e seu gato Felício, mas nem sempre fora assim. Por muito tempo morou também Seu Antonio, esposo de dona Gertrudes. E os filhos que tiveram: Sebastião, João Batista e Maria de Fátima. Por onde andará essas outras pessoas daquela casa? É o que vamos saber agora.

O começo de tudo foi nas proximidades do sítio Batatal. Seu Antonio era mascate nas feiras livre da região. Às terças-feiras ia ao povoado Riacho Grande, no tempo ainda em que se andava a cavalo, e de carro de boi. Levava rapadura do Ceará, querosene e tecidos. Trazia corda de caruá e couro de boi curtido, pra vender na feira do sábado. Numa das viagens de volta, uma trovoada fez transbordar o riacho João Gomes, e ficaram sem condições de passar. Por três dias ficariam debaixo dum trilho de labirinto, ao lado da estrada, esperando a cheia do curso d’água abaixar. No segundo dia em que se encontravam ali arranchados, Antonio, à época, ainda muito moço, mais outros dois feirantes, foram a uma casa lá no sopé do Serrote dos Franças, pedir um pote d’água, pra os que se encontravam na caravana. Farinha de mandioca e rapadura eram os únicos víveres que dispunham. Foi naquela casinha do pé da serra que Antonio viu pela primeira vez a menina Gertrudes. Daquele dia em diante passaria a frequentar as corridas de cavalo à argola, e novenas que aconteciam na região, na esperança de rever Gertrudes, porém somente, sete meses depois, na festa da padroeira Senhora Sant’anna é que veria novamente. De tudo fez para aproximar-se dela. Conseguindo algum tempo, depois de conhecer um de seus irmãos. E tudo se encaminhou dando certo pra namoro e casamento.

A casa da Rua Nova teria sido uma aquisição conseguida com muito esforço, trocada por uma parelha de bois de carro. Havia sido o presente de casamento do pai de Gertrudes, e mais 40 contos de réis, todas as economias de Antonio. Era casa simples, de piso cimentado. De uns três, ou quatro poucos cômodos.  Uma sala de estar, dois quartos, uma cozinha e uma área de serviço que acessava a um acidentado quintal. A área era alpendrada, ao lado tinha um banheiro acanhado e simples. Ali o telhado era tão baixo, que uma pessoa mediana precisava abaixar-se pra não bater com a cabeça. O primeiro filho do casal que nasceu naquela casa foi Sebastião, veio ao mundo no dia do santo que lhes emprestaria o nome. Dona Gertrudes trazia da casa paterna a devoção religiosa. Era fidelíssima aos princípios e sacramentos da fé católica. Os filhos foram todos batizados e crismados na Matriz de Nossa Senhora Sant’anna. 

Aos seis anos de idade Sebastião iniciou o estudo do curso primário no Grupo Escolar Padre Francisco Correia, e na Escola Estadual professor Deraldo Campos cursou o ginasial. Carinhosamente apelidado de Corisco, porque veio ao mundo nas trovoadas de Janeiro, Tião tornou-se assim, um galego esticado, corpanzil de atleta. Divertia-se a jogar bola na “prainha” do rio Ipanema e chegaria ao time do Ipanema Atlético Clube. Já rapaz, foi estudar o curso Técnico, na Escola Agrária de Satuba. De lá mesmo foi pra Maceió, morar numa república com alguns outros santanenses. Conseguiu passar no concurso do Banco do Brasil e só voltaria a Santana do Ipanema, já casado e com um neto encaminhado, pra Dona Gertrudes e Seu Antonio. Ao retornar, encontraria a casa paterna, aumentada de gente, outros dois irmãos que praticamente não conhecia, pois, nem teria conhecimento de que nasceram. João Batista quando veio ao mundo, ele ainda estudava em Satuba. Era portanto uma dezena de anos mais novo que ele. Maria de Fátima era uma menina, oito anos tinha quando ele veio pela última vez na casa da Rua Nova.

Dizemos a última vez, porque Sebastião morrera num acidente de carro. Num final de semana, ao retornar da praia do Francês com a família, seu carro em alta velocidade veio a colidir em uma Kombi, cheia de rapazes embriagados. Sebastião morreu na hora, seu filho e esposa sobreviveram, muito embora o menino ficara paraplégico. por toda a infância. Na juventude, com muita fisioterapia recuperou parcialmente os movimentos das pernas. Seu Antonio depois desse trágico episódio ficou muito triste. E sucumbiu a depressão, que acabaria trazendo-lhe outras doenças. Tornou-se hipertenso, contraiu uma pneumonia. Passado um ano certinho da morte do filho Seu Antonio faleceu.

Ainda restara na casa da Rua Nova, Dona Gertrudes, João Batista e Maria de Fátima. João Batista desde pequeno gostava de mexer em aparelhos eletrônicos. Brinquedos com algum tipo de comando elétrico que ganhava, ele desmontava e refazia dando-lhe outra forma. Tinha um sonho, tornar-se analista de sistema. Teve um pouco mais de sorte que o irmão Sebastião. Foi pra Maceió morar na casa de uma madrinha que custeou seus estudos em escolas tradicionais da capital alagoana. Estudou no Marista e no Liceu Alagoano. Alistou-se no exército para cumprir o serviço militar obrigatório. Acabou tomando gosto, e tornou-se oficial. Era pra o Major Batista hoje estar casado com a odontóloga Lúcia Calheiros, e curtir o fato de ser pai da linda menina Michele, morando no conjunto Aldebaran. Dizemos era pra estar, porque o destino lhe foi cruel. Escalado pra uma missão militar no pantanal mato-grossense, ao participar de treinamento de guerrilha, o helicóptero que tripulava sofreu um acidente caindo na mata, não houve um único sobreviventes.

Numa manhã qualquer do mês de agosto. De um ano em que só existia na casa da Rua Nova, Dona Gertrudes e Maria de Fátima. Uma gata deu de parir uma ninhada de cinco gatos dentro de uma caixa de papelão, no meio da quinquilharia que havia no alpendre detrás de casa. Dona Gertrudes daria todos os filhotes da gata, às pessoas que iam a sua residência comprar cocada, broa, bolo e pastel. Admirados pela beleza dos felinos lhes pediam. E quatro deles foram levados. Ficando apenas um gatinho preto. Como ninguém o levou a dona da casa simplesmente o adotou e colocou-lhe o nome de Felício.

Maria de Fátima nunca saiu de Santana do Ipanema. Quem sabe tivesse um sonho de um dia tornar-se religiosa. Estudava ainda na escola Sagrada Família, das irmãs holandesas quando uma doença acometeu-lhe misteriosamente. Depois de várias idas a Maceió para consultas na Santa Casa de Misericórdia, fora diagnosticada como portadora de leucemia. Dona Gertrudes tentou todas as formas de medicina alternativa pra tentar curá-la. Recomendaram que lhes desse leite de jumenta. Levou-a à lugares de romaria, Santa Quitéria, Juazeiro do padre Cícero. Fez uma promessa a Nossa Senhora de Fátima, sua santa de devoção, e da qual pegou emprestado o nome pra sua querida filha, pois nascera no 13 de maio. Tudo em vão a menina morreu.

No dia do sepultamento de Maria de Fátima. A casa estava repleta, pessoas que vieram prestar condolências a genitora da finada, e fazerem juntos o acompanhamento do féretro à morada derradeira. O sofá por alguns instantes ficou vazio e Felício de um salto o alcançou. O gato acomodado no estofado olhava fixo pro espelho, seus olhos hipnóticos, misteriosos, olhava fixo o espelho da sala, na altura do esquife. As pessoas ali presentes nem imaginavam o que via o gato. Dona Gertrudes chorava consolada por uma amiga de idas a igreja. O que via as pessoas que estavam na sala? Viam a menina deitada ao caixão, um gato no sofá, e a eles mesmos. E Felício, o gato, o que via? Refletido no espelho, via tudo isso e mais, Sebastião, João Batista, Seu Antonio e a própria Maria de Fátima, todos de pé ao lado do caixão.





Fabio Campos

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