O Reencontro

Quando a mãe de Mariana morreu, ela não quis aceitar, foi forte demais. Dona Estela morava no povoado Riacho Grande, assim denominado por frei Damião, hoje cidade de Senador Rui Palmeira. Antes da emancipação pertencia a Santana do Ipanema. Dona Estela havia uns três anos, descobrira um câncer pulmonar, em decorrência do tabagismo. Iniciado cedo, aos treze anos. Foram mais de quarenta anos fumando. Depois de descobrir a doença parou de fumar, não por determinação própria, foi obrigada a deixar o vício. Tarde demais. 

Os últimos três anos de sua vida, foi puro sofrimento. Muitos medicamentos, quimioterapia. Foi definhando, perdendo peso, mais e mais. Até o comprometimento total dos pulmões pelo carcinoma, um tumor maligno. Quando ainda conseguia andar, ia ela mesma, para as clínicas de tratamento em Maceió. Vinha a Santana do Ipanema visitar os filhos. Levava, apesar da doença, uma vida praticamente normal. No último ano a situação piorou, consideravelmente. Tinha crises de apneia, tanto dormindo quanto acordada. Alimentar-se, tornou-se um drama, devido à falta de ar, falta de apetite, as dores. Um chiado uníssono no peito. Assustou-se quando teve uma crise de tosse tão intensa que vomitou sangue. Uma febre constante, que nunca a deixava. Junto com a fraqueza física, a invalidez. Confinada em uma cama, foi mais de ano assim. Admoestada por uma tosse crônica que a sucumbia. 

O sintoma que lhe causou mais repulsa foi o surgimento de manchas escuras e pequenas bolhas na pele, talvez pela vaidade feminina, atingida em cheio. Mariana, depois que a viu naquele estágio da situação passou a roer-se de remorso, porque nesse tempo todo que sua mãe esteve doente, principalmente em cima de uma cama, foram poucas as vezes que foi vê-la. Não ia por pura preguiça. Quantas vezes Marcos seu esposo a chamara, pra ir até o povoado, mas ela inventava desculpas, as mais esfarrapadas e acabavam não indo.

Dois mil anos e alguns milhares de quilômetros separam-nos da Judeia de Jesus Cristo. Separados estamos da terra Santa, muito mais pelo espaço físico, que pelo tempo. Próximos de lá estamos, pelo modo de vida, pela religião e até pelas doenças. A lepra vitima ainda hoje tantos sertanejos. Lá na Galileia, havia preconceito pra quem tivesse o mal de Hansen. Os molestiados ficavam isolados, em lugares ermos. Impedidos legalmente de frequentarem lugares públicos. Ir à sinagoga nem pensar! Era preceito religioso: tudo que tocavam tornava-se impuro, até ao por do sol. Jesus tinha profunda piedade dos doentes, pois além do sofrimento físico, eram excluídos descriminados pelos seus mais próximos, e também pelos outros. Os tabagistas assim estão sendo tratados, feito aidéticos. Não faz muito tempo, sinônimo de ascensão social, tornou-se causa de repulsa. Tantas vezes Jesus curou, pessoas privadas da visão; lunáticos, possuídos e leprosos. Quando um leproso ou acometido de gonorreia conseguia a cura, deveria se apresentar ao sacerdote no templo, Cumprir alguns rituais, pagar o dízimo e fazer uma promessa. Tudo isso para ter restituído o direito de voltar a frequentar novamente a sociedade. 

Mariana, contemplava o corpo de sua mãe no esquife. Tudo havia sido cuidadosamente providenciado com o pecúlio da previdência social. Caixão, coroa de flores, lembrancinhas. As exéquias, carro de som pra acompanhar, a taxa do coveiro pra cavar o túmulo. Tentou lembrar-se do último encontro com a mãe ainda em vida. Onde estavam? O que conversaram? Rebuscou a memória. Lembrou: fora lá em Santana do Ipanema, em sua casa, na rua de São Pedro, era um dia de sábado, tinha acabado de chegar da feira, estava na cozinha fumando um cigarro, Dona Estela entrou, com a mão no peito pediu a filha pra jogar o cigarro fora. Pediu e começou a tossir. Uma crise de tosse que quase a fez vomitar, mas nada tinha pra expectorar, engasgou-se com saliva. Teve pena da mãe naquela ocasião. Ela que já fora tão bonita. Até se achava parecida com ela, e olhava, em que havia se tornado por conta da doença. A mãe, tão carente dela, estava ali em sua casa a pedir, a implorar, que ela fosse visitá-la. Nunca mais tinha ido ao povoado. Falou dos outros filhos. Seus irmãos que também não iam. 

–Mas eles são homens defendeu-os. E homem não liga muito pra mãe, só quando estão precisando. Mas ela era mulher. E mulher entende mulher. Tinha alguns conselhos pra dar a ela. Pressentia o fim. E por preguiça, não fora mais vê-la. 

Felipe e André irmão de Mariana estavam no quarto inconsoláveis. Felipe, acabou por dormir, sob efeito de sedativo forte. André apoiado no colo da tia Ester, que também morava em Santana, num choro copioso. Ali, no velório de sua mãe, de repente, passou a sentir muito medo. Medo da morte, medo da doença. Mariana prometeu a si mesma, ia parar de fumar. Quem era sua mãe e no que a doença a tornara. Um corpo mumificado, era no que se assemelhava agora. Um rosto crispado. Uma incógnita pairava sobre sua face, talvez pretendesse sorrir no último momento de vida, ou uma dor tão intensa, causadora do óbito, ficara solidificada na sua fisionomia. As unhas longas, deformadas. Cabelos, lábios, dentes, vias aéreas, pulmões, tudo impregnado de fumo. O mal, como o fogo tragado, consome a folha de fumo seca, dentro do cilindro de papel sedoso e branco, liberando no are nos órgãos, fumaça plúmbea e aromatizada, consumiu também a sua mãe. Fazendo-a aquela criatura que viera do pó, e ao pó tornada. Antes mesmo de descer completamente a sepultura. 

Precisou sair de dentro de casa. Sentia-se tonta, o mundo rodava, as vozes das pessoas pareciam distantes. Tinha os olhos inchados de tanto chorar, Marcos a amparava. O remorso corroia-lhe a consciência. Instintivamente meteu a mão na bolsa pra pegar um cigarro, era compulsivo, ainda mais sob forte emoção. O corpo cobrava uma dose de dopamina, conseguida a preço alto, através da nicotina. Desistiu. Tinha uma noite inteira pela frente. Muito tempo pra pensar. O sepultamento só seria na manhã do dia seguinte. Choro, muito choro, de único sentimento: remorso. O dia seguinte, prometia ser um dia frio, parecia que ia chover. Menos mal, o cemitério era longe. Sob o sol quente com certeza alguém ia acabar desmaiando. O sepultamento seria rápido. Acompanhariam o cortejo os familiares e os amigos da família. Mariana sabia, que aqueles momentos iria lembrar-se pro resto da vida: a música que o carro de som ia tocar, desde que o cortejo saisse de casa até o caixão baixar à cova. Seria uma música que falava de um diálogo que todos nós devemos ter com Deus. Melhor seria se falasse de remorso, combinaria melhor com o sentimento mais reinante, mais presente nos familiares da falecida.

Mariana teria uma noite e uma madrugada inteira, pra pensar. No início da longa noite, seus pensamentos, eram sobre fatos, lembranças, acontecimentos vivenciados com sua mãe. Fazia uma espécie de balanço, de como fora o seu relacionamento com ela. Depois começou a pensar exclusivamente na morte. À pouco relutara em acender um cigarro, justo por medo dela. Mas, quem era, ou o que era, a morte? Quis personificá-la. Afastou a idéia de que fosse tal como a representam nos filmes de terror, nos desenhos e nas cartas do tarô. Não seria um esqueleto encapuzado, portando uma foice. A morte é feminina, é ela: A morte. Portanto, sendo de gênero feminino, é vaidosa. Imaginou-a uma mulher formosa. Por isso o semblante dos moribundos, todos parecem sorri ao contemplá-la. O dito popular a incrimina: “Tem jeito pra tudo, menos pra morte”. É muito poderosa. Seu arsenal é poderosíssimo, desde um simples fio de lâmina, uma faca, uma adaga um facão, um machado, passando pelas armas de fogo, revólveres, metralhadoras, fuzis, bombas artesanais, bombas nucleares, indo pros carros, aviões, trens. Todas as bactérias, os vírus, doenças, peste, fome. Todas as drogas lícitas e ilícitas, também ele: o cigarro. 

Todos os pecados eram armas suas: A inveja, a mentira, a calúnia, o ódio, a gula, a soberba, a avareza, a luxúria, a miséria a preguiça. Tudo pertence a ela: à morte. A maldita preguiça, voltou a pensar nela. Lembrou de outro dito popular que diz: “A preguiça é a mãe da miséria”. A miséria é filha pródiga da morte. Mariana sentiu-se irremediavelmente miserável.

Enquanto todos repousavam, madrugada à dentro, Mariana confabulava: O que seria fisicamente a morte? Um estado de sonolência? Um estado letárgico? Um sono profundo? Ou apenas o cessar das funções vitais. Por que os médicos falavam em tantos tipos de morte? O que pensa o biólogo a esse respeito: que está sacramentada caso ocorra à cessação de sinais vitais, a necrose das células do ser vivo; O médico, vai acreditar que ela se concretizou, ao observar-se no corpo, a morte clínica; O jurista vai apoiar-se na medicina legal que dependendo de uns cem aspectos não-vitais, a validará com um estado de óbito; Há ainda a considerar-se a morte vista sob a ótica social e religiosa. Dizemos às vezes que alguém está “praticamente” morto! Ou, se estaria, um morto-vivo! E o que dizer da extrema unção, administrada a alguém que ainda não morreu, mas já considerada como tal. Levando-se em conta que morte é a ausência de vida, por falta de oxigênio nas células, sejam elas cerebrais, sanguineas, cardíacas - como garantem os médicos, ao afirmar que a falta dele – o oxigênio - no cérebro, causa danos irreversíveis, e a depender da exposição a tal procedimento, instalou-se a morte no ser vivo. Observando por essa ótica, o fumante, está morto desde que iniciou o consumo de tabaco, pois inala fumo, em substituição ao gás essencial a vida. Ora mas essa discussão não vai levar-nos a nada! Morte é morte e pronto. 

E se uma vez personificada fosse realmente uma mulher? Dona Estela, a mãe de Mariana dizia que mulher com mulher se entende. Se pudesse conversar naquele momento com a morte. Teria apenas um pedido a fazê-la, não tinha direito, mas faria assim mesmo. Imploraria até: Gostaria de falar com sua mãe. Não queria fazer como fizeram os familiares de Lázaro, lá na Judéia. Cobraram de Jesus, que se ele estivesse lá, no momento da passagem, seu parente, e ele não teria morrido. E Jesus, cheio de compaixão e misericórdia, para com eles, e seu amigo, o ressuscitou. Pois dizia: ele apenas dorme. Então sua mãe apenas dormia. Precisava falar com ela. Não queria que tornasse à vida. Pra que? Pra sofrer mais ainda! E a doença? Ao invés de querer que a mãe viesse, ela é que queria ir ao seu encontro. Já não temia mais a morte. Se morrer naquele momento significasse, o reencontro com sua mãe, não teria receio algum nisso. Já ia alta a madrugada. Algumas poucas pessoas permaneciam no velório. Sentada no sofá de sua mãe, recusava-se a ir pro quarto. Ali ao lado, junto ao séquito se sentia mais próxima dela. Estava muito cansada. E vencida pelo cansaço adormeceu. Achou que havia acordado, mas não, havia acordado dentro de um sonho. Isso mesmo, apenas um sonho. E lá estava ela, diante de sua mãe. Era um lugar diferente, havia corredores e salas. Ambiente parecido com um hospital. Encontrou-a só, ocupava-se com algo. O que fazia? Aproximou-se, tão absorta estava na sua tarefa, que nem percebeu, sua aproximação. Ela escrevia.

– Oi mãe!
–Oi filha! Deus te abençoe. 

( Parecia tão tranquila ) Não tinha mais aquele ar de preocupação, com tudo e com todos. A aflição com a doença, as angústias. Dava pra perceber no seu semblante sereno, que nada mais daquilo a atormentava. Não perguntou por Felipe, nem por André, nem onde estava Marcos. Ela sempre perguntava. Seria sua mãe mesmo? Tão mais jovem e bonita. Será que ela sabia que havia morrido? Se sabia, não parecia.

–Mãe?! O que está escrevendo?

- Escrevo sobre eu mesma, minha filha. Escrevo pra Deus. Estou agradecendo a vida que ele me deu. Os filhos que tive, você e seus irmãos. É engraçado, quando vivemos, estamos tão preocupados que mal nos lembramos de agradecer. 

–Mãe? 
–Diga. 
– A senhora sabe que morreu?
–Sei sim! Um moço muito bonito me trouxe até aqui, disse pra aguardá-lo. E que, por enquanto ficasse escrevendo. 
–Mãe. Eu vim aqui. Porque preciso lhe dizer algo...
–Fale minha filha.
- Mãe... Eu vim te pedir perdão... Acho que não fui uma boa filha.
–Não diga isso, minha filha. Deus lhe perdoa... E se Ele nosso pai todo poderoso perdoa, eu também perdoo. Fique tranquila, volte. Vá cuidar de Marcos. Vá cuidar de seus irmãos. 

Mariana sentiu uma mão a segurar-lhe fortemente pelo ombro. Dava-lhes solavancos enquanto ainda fitava sua mãe, recusava-se a olhar quem, por trás, lhe puxava e lhe chamava pelo nome:

–Mariana!...Mariana! Acorde! Já é hora de ir pro cemitério!

Era Marcos que a acordava. Ainda sonolenta despertou, se recompôs teria que ir pro cemitério, iria pro sepultamento de sua mãe. A filha de Dona Estela acordou convicta de uma coisa, agora tinha certeza – Da Morte - não tinha mais medo. Bela e sedutora, também a morte tinha uma convicção: De que todos, sem exceção, iriam ao seu encontro um dia. E que ela sempre vencia na batalha contra a vida. Apenas um, somente um, a tinha vencido, o nazareno Jesus Cristo. E prometeu a quem o seguisse também garantir-lhe vitória sobre ela. 


Fabio Campos

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