O Colecionador


Santana do Ipanema de antigamente refletia uma paz nas ruas de passos de pedra. Nas casas subindo e descendo ladeiras. Casas perfiladas, enfileiradas, feito guardas de palácio imperial. E eram como se apontassem dizendo aos desavisados estrangeiros: Olhem aqui passa um rio! Casas simples de Santana, algumas de eiras, algumas de beiras. Muitas outras, sem eira nem beira. Cores do casario, pintadas como se à lápis de cor. Nas calçadas, um aqui, outro lá, postes de madeira. Unidos por fiação pendurada, preguiçosa - encimados por lamparinas - de ferro, desenhado com esmero. Carregadas de poesia.

E tudo parecia conspirar história. Casas e ruas se prestavam a um cenário perfeito de si mesmas. A igreja erguida em imponência de torre, relógio e badalo. Cobrava pra si os olhares dos parcos transeuntes. O casario no paço, em torno da praça do coreto. Uma ciranda de telhado colonial, sob um céu de vivo anil, salpicado de nuvenzinhas brancas. Tão branquinhas, feito chumaços de algodão esvoaçando ao vento! Janelas cerradas olhavam. Janelas escancaradas, mesmo sem gente debruçada, também olhavam. E se alguém passasse no passeio, ainda que sozinho parecesse caminhar, percebido era, pelas janelas que olhavam.

Foi nesse tempo, que a gente costumava chamar de outrora, viveu por aqui um homem. Diferença nenhuma tinha dos outros homens. Não fosse pela mania que tinha de colecionar coisas. Poseidônio adquiriu a mania de ajuntar quinquilharia, ainda na infância. Talvez motivado pelo próprio pai, um velho capitão de polícia. O capitão Guedes, tinha mania de amelhar armas. Iniciou-se a colecionar punhais, espadas e adagas. O reluzente fio platino das lâminas das armas brancas causava-lhe verdadeiro fascínio. Logo estendeu a coleção para armas de fogo. Exibia na parede de sua sala de estar, velhos bacamartes, fuzis com pintas de doirados no cão. E desenhos arrojados nas curvas e empunhaduras.

Há um ditado que diz: Da boca de velhos homens, quando eles resolverem falar, os mais novos procurem ficar bem atentos, porque verdades fatalmente poderão ser pronunciadas. E foi exatamente da boca de um desses caboclos, vivido na lida, do açoite com gado bravio, com mula de carga e com gente do tempo da escravidão, foi de um deles que ouvi. Escorava os ossos num desses tamboretes compridos, dos pés de forquilha. E era uma manhã chuvosa de agosto. Dado ele, a tarefa de fabricar um cigarro de fumo picado num pedaço de folha de milho, sequinha que era uma beleza! Enquanto esperava o café que ia torrado num fogo à lenha, feito no pretume dum caco de argila, adoçado com rapadura. Enchendo o ar de aroma forte e adocicado. Ele disse bem assim:

-Toda arma possui uma alma. E não é bom o espírito que cada uma delas possui. Porque meu irmão! Toda arma, seja ela qual for, tem parte com o Demo!

Interessante como essas pessoas possuem o dom pra pronunciarem esses ditos, e pela forma como colocam as palavras. A entonação, a dramaticidade carregada, embora tentem parecer natural, mas muito proposital, provocam no semblante dos interlocutores uma espécie de aura, de mistério. Se põem a colocar uma boa pitada de profecia no que dão de pronunciar. É não sei se seria preciso dizer que o Demo mencionado pelo caboclo, nada tem com a origem grega da democracia, refere-se ao coisa ruim, o capeta, o diabo mesmo!

Um dia aconteceu. Capitão Guedes estava a cumprir um ritual sagrado: no momento da cesta, punha-se a limpar uma de suas peças de coleção. Iniciava-se numa sequência tal, que ao cabo de um mês parte do seu acervo passava pela faxina bélica. Foi justamente num dia em que limpava uma Lunger, uma malza de fabricação Alemã, da fase final, da Segunda Guerra Mundial. A filha do capitão estava brincando, se balançando numa rede de renda do Cariri. Havia uma bala na agulha esquecida pelo militar que também praticava tiro ao alvo com suas relíquias. Fazia isso para que não perdessem, nem ele nem a arma, a habilidade da qual eram capazes. E um disparo se ouviu naquela tarde, a menina fora baleada. O projétil foi alojar-se na sua nuca. E a menina Cecília, de apenas treze anos, a filha primogênita do capitão Guedes ficou cega e paraplégica.

Seu irmão Poseidônio foi o que mais se apegou a Cecília, tentando amenizar todo o mal causado pela fatalidade, tinha ele dezesseis anos na época do infausto acontecimento. Era em tudo, realmente o mais próximo dela. No passeio matinal, passou a ser seus olhos. Lia pra Cecília, livros de romance, de contos e poesias. Passaram a ter uma cumplicidade de sentimentos muito forte. Relatava pra ela o que via, ou o que se encontrava a sua frente. Fosse um quadro pintado, um filme, um entardecer, de por de sol ou dum amanhecer. E acabaram criando uma linguagem própria de comunicação. Procurava através de artifícios através da voz e do contato, suprir suas limitações de visão e de locomoção. Se uma linda borboleta amarela esvoaçasse sobre as flores do jardim, procurava-lhe a melhor forma de relatar, era todo ele sensibilidade. Abusava na pormenorização de detalhes pra que ela se apossasse do momento mágico. A impressão que se tinha era como se ela pudesse novamente enxergar e se pusesse a correr, feito criança no encalço da insecta bailarina. Levava-a para que tomasse banho no rio. Punha em contato com os mais inusitados elementos da natureza, musgos, cascalhos, e a ouvir os mais variados sons de pássaros. Juntava pra irmã conchinhas e caramujos.

É dessa época que Poseidônio se iniciou na arte de colecionar. Sentia necessidade de guardar as experiências fascinantes que procurava proporcionar a Cecília. E junto às bolas de gude, figurinhas e revistas em quadrinhos, times de botões, passou a colecionar também borboletas. E por conta da raridade, do fascínio que sentia, iniciou uma coleção de perfumes, pois eles despertavam em Cecília emoções muito vivas. Comparava e catalogava fragrâncias a depender de cada momento marcante. Um recital era marcado por um aroma floral ou almíscar, tudo dependia das emoções afloradas. O tato aguçado em ambos, o toque dos lábios, beijos e carinhos. Se amavam tal que se sentiam dois, uma só pessoa. Passou também a colecionar vinhos, degustá-los também, traziam lembranças boas ou aludiam a novas outras. Estendeu-se a colecionar moedas e cédulas antigas para exercitar a sensibilidade a textura. Nela Cecília rememorava lembranças da primeira infância. A coleção de livros, por uma obviedade, neles e deles trazia um mundo de sonhos, e ambos se aventuravam em viagens fantásticas. Reviviam personagens de histórias que protagonizavam. Possuíam instrumentos musicais e neles praticavam, ela ao piano, ele ao saxofone. Tinham coleção de selos por conta da quantidade de correspondências trocadas com os amigos que Cecília fazia através de revista e amigos distantes. Deram de iniciar juntos, uma coleção de momentos bons, e pra cada um, uma pedra preciosa simbolizaria. Cada emoção vivida entre eles, uma pedra, um valor: topázios, ametistas ou esmeraldas. E Poseidônio passou a pintar quadros e sua irmã era seu modelo preferido. Lindos nus artísticos produzira a partir de Cecília. Quando a menina completou dezoito anos, deu de aparecer uma febre muito forte que minou sua parca saúde. E Cecília veio a falecer.

Poseidônio ficou muito triste, mas a vida continuava. Muito anos se passaram desde então, continuou ele na triste sina de colecionador. Casou-se por três vezes, sem dar certo com nenhuma das mulheres com quem contraiu matrimônio. As ex-esposas dariam-lhes três filhos, dois meninos e uma menina. À filha primogênita o casal decidiu que se chamaria Cecília. Os meninos ficaram com suas mães. Cecília por decisão judicial ficou com o pai. Poseidônio tornara-se militar assim como fora seu pai. Sargento Poseidônio, que nesse ínterim continuava a colecionar toda sorte de objetos. E títulos de honra. Certificados, títulos, medalhas, brasões, diários, troféus de competição balística, etc. Um belo dia, o sargento se encontrava numa feira de relicários, e uma pistola toda trabalhada em ouro e em tons prateados, do tempo do Brasil império, chamou-lhe a atenção. E foi sua mais nova aquisição para mais uma coleção que daria de iniciar dali por diante, a de armas. Cecília sua filha, doze anos tinha agora. E tão lindos olhos, e longo cabelo possuía. E como parecia com sua falecida tia. Ainda agora, enquanto o sargento dava-se ao ato de limpar a velha arma, Cecília brincava e conversava com sua boneca, e balançava-se na rede de renda do Ceará.



Fabio Campos

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