O Visionário

Rua Martins Vieira, em Santana do Ipanema. Endereço de morada de Jota Érre, um jovem professor, e sua mãe, também professora. Ao aposentar-se esta, fora embora pra Maceió. Algumas modificações na casa, faria depois de sua ida. Mesclou arte sacra, com peças rústicas da cultura sertaneja de muito gosto. Vivos e coloridos bibelôs de Pierrot, deram um ar de alegria ao ambiente. Aproveitando a luz natural, arejou com muito verde, ficou bem aconchegante. Num sábado, quando o sol já ia alto, acordou. Notou que amanhecera sobre as almofadas coloridas do tapete da sala. Foi se apercebendo do mundo, inicialmente de olhos fechados. Abriu-os então. Um litro de whisky e o copo, sobre o centro, o que lhes veio primeiro. O som ligado, muito embora nada tocasse. Lembrou-se que não estava só. Um belo varão, desnudo da cintura pra cima deitado ao sofá, também já acordado. Ocupava-se com algo, que de onde estava não dava pra ver o que era. 



-Pedro, tu me amas?

-Amo.

-Pedro... você me ama?

-Amo Jota Érre!

-Ama mesmo?

-Para com isso!... Tá parecendo àquela passagem bíblica, em que Jesus...

-Pare você! Não tem nada que comparar com coisas da bíblia.

-Você tem mania de duvidar de tudo que eu digo...

-A música continua nos meus ouvidos. Ainda ouço “Faroeste Caboclo”.

-Sou mais Mastruz com Leite, a História de Um Vaqueiro... Tá vendo, como a gente não se entende?...

-Meu amor! Quem disse que se entender, tem haver com gosto. Gosto é gosto. Pessoas podem gostar de coisas diferentes e combinar-se perfeitamente... 

Numa mesa noutra sala, um oratório repousava sobre folhas de jornais, rodeado de instrumentos de pintura, latas de tintas, esmaltes e vernizes. Era uma peça em madeira, antiguíssima, esmorecida nas cores pelo tempo. Tinha traços em rococó na portinhola, e barroco nos querubins e no buquê ao pé da cruz ao alto. O professor restaurava peças antigas, imagens sacras e objetos artísticos. Tinha que terminar a arte naquele final de semana. Era serviço de um colecionador exigente, o padre da paróquia de Senhora Santana. Também iria a cidade de Poço das Trincheiras, ver a que ponto estava os trabalhos de sua equipe na restauração do altar-mor da igreja de São Sebastião. 

Encantado era Jota Érre pelo trabalho que realizava. Além do que, quando se entregava ao serviço, ao simples contato com as peças carregadas de história, sentia que uma aura o envolvia. E fatos acontecidos em derredor daqueles objetos que tocava, levava-o a uma outra dimensão. Numa espécie de transe visionária, abria-se diante de si um portal de energia cósmica, que lhes dava acesso a uma visão panorâmica de tempo pretérito e mesmo de algo no porvir. Vislumbrava eventos, sucedidos naqueles locais à muito tempo passado ou mesmo dum evento vindouro. Ao adentrar ao templo Sagrado da paróquia de Poço das Trincheiras, fez a formal genuflexão à frente do púlpito. Ao erguer a cabeça eis a visão que teve: 

Soldados trajando indumentárias do século XVIII. Lutavam em uma batalha que se procedia ali. Ele via através das paredes, do lado de fora da igreja. De um lado soldados da Coroa portuguesa, fiéis ao imperador D. Pedro II, do outro soldados holandeses. As tropas portuguesas, era em maior número. Os batavos haviam construído uma trincheira onde se abrigavam. Estavam em desvantagem noutro ponto, não tinham o apoio da população da vila de São Sebastião e perdiam o embate. No meio da tropa holandesa havia um fidalgo cujo brasão de família era Von Dherley, na boca dos nativos sertanejos tal palavra pronunciavam Wanderley. Esse homem comandou o que restou da tropa motinada, resistiram bravamente ao contra-ataque português, refugiando-se com 30 homens na montanha que hoje é conhecida por Serra do Poço. Ali fixaram residência, reconhecendo a supremacia lusitana e a Coroa portuguesa não mais o importunou. Voltando da transe, Jota Érre estava exausto, naquele dia não fez mais nada.

À noite, de volta Santana do Ipanema, foi ao Bar Alto da Fé, precisava meditar. Era dessas noites quentes, prazenteiras e a magnitude do manto negro celestial rendado de estrela, pedia-lhe que cantasse. E pôs-se a cantar, pra seu amado Pedro, que o acompanhava ao som plangente de violão.

“De noite em rondo a cidade a te procurar
E sem encontrar..."

Contou a Pedro o que sucedera em Poço das Trincheiras. Disse que descobriu o dom das visagens ainda criança. Foi num natal, ao consultar o relógio de algibeira, seu avô despertou sua atenção, de menino de oito anos de idade, e o permitiu que manuseasse a máquina de medir tempo. Ao tocá-lo fez a primeira premonição:

-Mamãe vovô vai morrer no seu aniversário, ano que vem!
Ficaram todos, inicialmente perplexo com a afirmação, depois consideraram uma bobagem. Coisa que criança diz, sem que se deva dar créditos. Não quiseram aceitar, mas aconteceu. Exatamente como previu. Pedro ouvia tudo muito sério. Opinião nenhuma emitiu. Mesmo assim, nada falar já é opinião. Causava certa inquietude, que ia virando irritação em Jota Érre. Pensava que talvez não acreditasse em uma só palavra do que dissera. Não tinha como provar. Talvez tivesse. Aguardaria uma oportunidade.



Pedro trabalhava de secretário pra paróquia de Senhora Santana, às vezes fazia vez de chofer do pároco. No domingo viajaria com o padre pelo interior do município. Naquela noite Jota Érre levou o oratório para área de serviço, e dedicou-se ao trabalho de restauração, só parando quando concluiu. Já era mais de duas da manhã quando findou a obra. Depois de um banho revigorante, que lhes devolveu as energias, tomou uma taça de vinho. Andou pela casa em silêncio, fumando um cigarro. Pedro encontrava-se deitado no sofá. Ao ver o rapaz dormindo, aquele corpo escultural, seminu, estendido, sobre a luz tenra do abajur Jota Érre pôs-se a acariciá-lo, isso o fez desperto. E ali mesmo se amaram. Ao amanhecer Pedro tentou sair de fininho pra não ser percebido, mas Jota Érre já estava acordado, de onde se encontrava deitado disse-lhe:

-Enquanto trabalhava no oratório do padre esta madrugada eu tive uma visão. Uma tempestade muito forte vai cair esta tarde quando vocês estiverem na comunidade de Olho D'água do Amaro. Não tentem voltar pela ponte de tábuas do Serrote dos Franças, ela vai ser arrastada pela enxurrada.

-Mas está uma manhã tão linda! Veja, nem parece que vai chover!

Pedro e o padre foram pra seu destino. E nem bem o pároco encerrou a missa campal, rezada na comunidade Batatal tendo presente toda circunvizinhança. E um vento forte sacudiu um monte de cisco e poeira no altar improvisado de linhos brancos. De um céu cheio de nuvens cinzas e pesadas, roncaram os trovões. Antecedidos de raios que estalavam prateando as veredas. Pardais, garças e andorinhas, as aves todas do céu já havia se recolhido a abrigos. Choveu, choveu torrencialmente. E era verão. 

Fabio Campos

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