A Décima Terceira Letra

Ao encerrar aquele livro, Maria não sabia se perplexa, ou apenas impressionada. Na ficção, uma personagem era ela mesma, não tinha a menor dúvida, era ela. Aquela história relatava com riqueza de detalhes uma pessoa a quem conhecia: ela própria. O autor, americano do Texas, um cara, a quem jamais, teria tido a menor chance de ter conhecido. Sua parca existência vivera em plena caatinga do sertão das Alagoas. Dona Durvalina sua mãe, tivera dezenove filhos, porém, somente treze vingaram. Era esse o modo do sertanejo dizer a lei de Darwin. Maria do Amparo Vieira, registrada no cartório das causas cíveis, daquele longínquo condado, incrustado na zona rurícola alagoana, nascera num tempo em que o militar, Artur da Costa e Silva, não havia muito, se encontrava no poder máximo da nação brasileira, Che Guevara morria na cordilheira Andina, e Fidel ainda verde, na idade e nas fardas, subira e se mantinha no poder de Cuba. Por essa época chegaria a décima terceira herdeira do clã dos Vieiras. O documento do tabelião bem que podia dito: Vai Maria! Vai viver tua infância de carros de boi, vai ser bela cabocla, adolescer nadando no riacho, colher fruta no pé e sonhar, esse é teu destino. Porém num ponto, a história do texano não batia com a dela.  Envolta em reminiscências, Maria não sabia, mais iria descobrir coisas interessantes.

Seu Floriano Doroteu Vieira, o pai de Maria, era homem rude. Um homem braços, tronco e mãos. Mãos severas, gigantescas. Mãos que, como ninguém, sabia laçar o boi, mãos que amava a terra, com ela amasiada, e lhe fazia carinho, e recebia em troca, com fartura e regozijos. E os céus de Deus testemunhavam e aprovava aquele amancebamento. Seu Floriano que levava horas, talvez as melhores de sua vida, manufaturando um cigarro de fumo picado e palha de milho. Escornado num banco corredor, a contemplar sua obra, feita com enxada, arado e máquina de plantar porém nada seria se não fosse a ajuda do Criador, a obra não estaria perfeita: milharal dando milho, palmeiral, dando palma, leguminosas: feijão. Cabeças de gado de leite, engorda e trabalho. O pai de Seu Floriano, Seu Pedro Rodrigues, fora um rico fazendeiro, que mantinha sua imensa propriedade, na lei do tempo da escravidão. Mantinha negros na senzala, castigava-os sem dó nem piedade. O próprio Floriano presenciou, uma vez, seu pai dar uma tremenda surra de chicote de couro cru, numa negra, totalmente nua no terreiro da casa grande, sob a vista de todos. Cada chicotada arrancava tiras da pele da negra, e o sangue lavando seu corpo ia tingir de um vermelho escuro o barro de chão batido. Tudo isso, unicamente porque a preta, havia negligenciado seu serviço, fazendo com que os bezerros da desmama, se soltassem do curral e fossem mamar nas vacas leiteiras. Seu Pedro que em surdina abusava daquelas mulheres escravas, as mesmas em que batia covardemente. E as mucamas davam de parir negrinhos e delas nasciam caboclos dos coitos pecaminosos, que viravam homens brutos, que viravam capitães do mato. Afilhados do poderoso padrinho, senhor Pedro. Herdeiro de metade das terras devolutas doadas pelo governo no começo de tudo, assim fora Seu Pedro Rodrigues. Terras fincadas pras bandas dos sítios Capim, Brejinho, Cava Ouro e Rua Nova. Floriano ainda jovem era dado às farras, o que herdou do pai, acabou. Em viagens de avião, pro sul do país, a gastar nos cabarés e cassinos da capital paulista.

Nas mãos daquele homem, agora velho, cansado e doente, Maria e os doze irmãos sofreram o pão que o diabo amassou. Seu Floriano amargava a revolta de ter perdido o que tinha, e culpava a imensa prole por isso. Dia de feira livre, era dia de espetáculo. Cedinho os bois de canga eram atrelados no carro, e rumavam pro povoado. Com ele ia toda a família. Só voltavam no fim da tarde, quando o todo poderoso, aquele que ditava naquelas plagas quem iria viver ou morrer, o rei sol. Aquele que ainda a pouco, inclemente castigava o roçado, e fazia tremer o aceiro, enquanto a rolinha Fogo-apagô, lá no galho do umbuzeiro cantava seu canto lamurioso. No cair da tarde o astro de fogo amansava, amolecido na sua brabeza, se inventava de exercer no céu, a mais nobre arte de pintor. Danava-se a pintar magníficas obras, como a despedir-se do sertão, seu servo cativo, prometendo retornar no outro dia. Seu Floriano embriagado, transformava-se num homem mau, ditava palavras duras contra dona Durvalina. Por nada, batia nos filhos, sem dó nem piedade, pura e simplesmente por revolta. Numa daquelas voltas da feira, chegou trazendo uma velha carabina. Estava resolvido a experimentá-la. Havia sido um de chuva, um mar d’água vertendo pelas veredas do sertão. Raios e trovões esbravejavam clareando o negrume do céu, como se reprovassem as atitudes dos homens cruéis. Era de tardinha, mas parecia noite. Seu Floriano obrigou Maria a ir colocar umas garrafas vazias de pé, no meio do terreiro, pra ele praticar tiro. Maria tinha medo de trovão, negou-se cumprir, mas a ordem estava dada, tinha que ir, não importava o choro. A menina deu o primeiro passo, vacilou. O trovão estrondou e o raio rasgou o breu celestial com mais um clarão. A menina estava decidida não iria, deu meia volta e correu, ao correr pro quarto, Seu Floriano fez da própria filha o alvo, atirou.

Maria, agora menina-moça se olhava no espelho, fixou o olhar na pequena cicatriz, na fonte esquerda deixada pelo tiro daquele dia. O colorido das roupas no varal dava um ar alegre, ao sertão seco. Numa tarde prazenteira e preguiçosa, ao voltar do açude, cabelos dançando no sopro do vento norte, Maria resolveu ir embora, ia sair de casa. Ia morar com sua irmã mais velha, professora na província vizinha. Despediu-se da mãe e dos irmãos, foi muito triste, muito choro. Seu Floriano não participou da despedida, jamais concordaria. Um dia alguém bateu a porta, Maria foi ver, era um carteiro, entregou a correspondência, mas também todo o seu coração ficou, todo seu amor, daria aquela bela morena, que correspondeu a amor do jovem mancebo, entregador de cartas. Treze meses de namoro, e se deram em casamento.

Maria foi embora de vez. Deixou sua terra e sua parentela para trás. Noutro dia, ia pelo meio da feira, da nova província onde vivia com seu marido. De repente foi interpelada por uma cigana. A mulher como que surgida do nada, com seu longo vestido colorido, muitos colares e brincos vistosos, destacava-se no meio do povo. Uma figura estranha como se tivesse saído de um velho conto de Cherazade, das mil e uma noites, ou do filme Laurence das Arábias. Pediu para ler sua mão em troca de algum tostão. Por curiosidade Maria o permitiu. A mulher embusteira, se dizia vidente, acabaria por dizer verdades do passado de Maria que ela julgava esquecido, morto e enterrado encoberto pela poeira do tempo. Disse de um belo rapaz, seu primo, que a amara em segredo, que morava vizinho a propriedade de seus pais. Esse rapaz hoje era casado porém não era feliz. Disse-lhe ainda que na velhice Maria iria ficar viúva. O que Maria gostaria muito de ter ouvido da vidente, que talvez soubesse, porém não lho revelou, era sobre um de seus irmãos que muito lhe amava, que praticamente a criou, que lhe dispensara cuidados na pré infância. Tantos eram os filhos que sua mãe tinha que os irmãos tinham de cuidar uns dos outros. Aquele era o que dava-lhe banho, alimentava-a, cantava-lhe cantiga de ninar. A vidente não disse que ele morreria de doença grave. Ao palácio celestino, onde se traçavam os destinos, em sonho, Maria teve uma visão. Ao lado de um anjo que lhes teria dito: “-Maria! É preciso que a décima terceira letra viva, para cumprir sua missão na terra.” Só então compreendeu, a décima terceira filha, ela na geração de seus pais. Seu irmão caiu em doença e faleceu, foi tanto amor que a própria vida, ainda que não soubesse como e porque, também lhes deu.         

Fabio Campos

Nenhum comentário:

Postar um comentário