Jardim dos Desencantos

Do banco onde estava sentado dava pra ver o jardim. Olhando assim parecia apenas um jardim. E era só um jardim. Se olhasse para cima um céu azul maravilhoso estava lá, pedindo pra ser olhado. E se namorasse aqueles azuis, por certo viria encher os olhos, a boca semi-aberta, traqueia, e pulmões. O frescor, invadindo a mente, que tanto carecia de refrigério. Esperava. Por Deus! Era tão cansativo. Quem gosta de esperar? Ninguém gosta! Porém era preciso. Pois além do que apenas viam os olhos, talvez houvesse outros mundos. Submundo, ultramundo. Se bem que parecia, apenas parecia, não caber naquele instante, discernir que tipos de mundos além daquele existiriam ali. Além daquele que viam os olhos. A grama no jardim, pedia água, sempre pedia. Musgos sempre careciam de água. Era só abrir a torneira. E tinha consciência que detinha o poder entre abrir e não abrir. Poder entre a vida e a morte. A torneira, não estava mais que um braço estendido. Cristalina fluída, translúcida, refrescante, água que possibilitaria vida.

Mundo
Noutro dia, havia um menino brincando de bola na rua. Na verdade vários meninos brincando de bola se haviam. Brincaram e brincaram, mas também foram pra escola. E os meninos virariam rapazes e depois homens feitos. Deles que conheceriam outros mundos, e outros amigos. E dariam de andar em más companhias. E vilipendiariam o conselho dos mais velhos. E conheceriam o fascínio devastador da diamba, talvez pra outros e mais outros sonhos psicodélicos, se sentiram atraídos. E nessas viagens embarcariam de corpo e mente, que tanto mentia. E da mentira que vivam passariam a mentirem pra si mesmo. Uma senhora idosa, viúva, fora estuprada, a poucos metros daquele jardim. Pobre viúva vivia sozinha. Ninguém ouviu nada. Dias depois morreu. A pobre senhora morreu. O rapaz que escolheu o mundo dos sonhos, quão caro pagaria. Foi atacado no meio da rua, alvejado por um tiro, nas costas. Acabou paraplégico. E o sol pela manhã ia misturar-se com o balaústre do jardim. Nele se entranhou, no ouro amarelo de cor. E emprestou-lhe calor, e aquecia o vento que vinha admoestar os tecidos epiteliais. Tanto por sobre a pele como para além dela. E desciam a possibilitar novas vidas, no jardim, sob a terra, sobre as plantas, e para além delas. Tudo, tudo muito a cima dos pensamentos volúveis.

Os pardais, sob os fios de alta tensão, se aqueciam entufavam suas penas e enchiam o ar de cheiro de sertão, e de menino de calça curta e atiradeira. Cheios de inocência, de tomar banho no riacho. Nus, sem pudor, de sexo minhoca, que nem pelos pubianos tinham. Meninas, no frescor da água e da vida, só de calcinha, raquíticas, de minúsculos tórax, apontavam seus peitos intumescidos, e se embeveciam de barreiro.  E os pardais cantavam canto de namoro, núpcias e acasalamento, e diziam a todos que assim era bem mais fácil viver.  Era preciso se dar conta de que tudo, tudo que respirava, tudo que rastejava, vivia. E tudo que vivia admoestava a si mesmo, pelo fato de viverem, pelo peso da existência. Elementos sociais do mesmo universo, do mesmo nível, dito elevado, ainda que fossem do nicho de vermes, insetos, anfíbios, quão diferente um dos outros eram. Grilos que cantavam canto de esfregar patas, mas que pouco nos importavam seu canto. E que podíamos enxotar ou simplesmente esmagar sob o calcanhar. Sua cri-cri sinfonia que tanto e tanto incomodava. Importava-nos o incômodo que causavam, e decidíamos que haviam tornado-se réus de morte, porque a execrável opereta entomológica afetavam o sistema neurológico, de seres ditos mais evoluídos, ditos humanos, desumanos. Haveríamos de considerar que possuíam o péssimo hábito de roerem roupas. Sentenciados eram de morte, por lei promulgada e outorgada por nós mesmos. E como deuses de um mundo, mundo. Tínhamos poder pra decidir quem viveria quem morreria.
  
Submundo
Ainda havia o jardim. E lá adiante uma esquina, por várias vezes, haviam encontrado um trabalho de oferendas para entidades de outras esferas existenciais. Ainda de manhãzinha, dona Gestrudes, ia passando, ao ver o despacho, lançou grito de horror. Porém isso, nem um pouco alterou a lida dos mosquitos, e do orvalho, que cumpriam sua missão de fazer o amanhecer se fazer dia. Gélido halo duma manhã de sexta-feira treze de agosto. E alguém teria dito que o trabalho tinha sido feito pra criar desavenças num casal casado. Uma mulher dama que tinha um caso com um marchante, queria que o açougueiro deixasse a mulher com quem vivia. O despacho amanheceu lá na encruzilhada, de onde o jardim olhava, e ficou lá pra quem quisesse ver. Um balaio contendo uma garrafa de cachaça, anéis partidos, cédulas de dinheiro impregnadas de perfume, pétalas de rosas, uma galinha preta, morta, farofa, azeite de dendê, pipoca, bombons de chocolate, maços de cigarro, fósforos. Fotografias três por quatro, de um homem de meia idade sisudo, bigode, cabelo bem penteado e paletó, que por certo se sentia tão mal dentro daqueles trajes, e debaixo daquela manhã pior ainda. Dava pra perceber que nenhum só dia o marchante teria sido aquela pessoa do retrato. A mulher era de uma tez serena, quase ingênua, por certo nada satisfeita por saber-se exposta a vista do povo, fora da caixa de sapatos onde passara mais de vinte anos guardada. O sangue do galináceo respingara sobre as fotos. Enquanto o que se havia no pires branco, fora invadido pelas formigas.  O marido da viúva estuprada apareceu lá. Lembro de quando ele morreu, era um homem forte um homenzarrão, tipo assim, pau pra toda obra. Desentupia esgotos, esgotava fossas, carreador de mangaios da feira. Cuidava com zelo de muares, criar burras de carroça era mais que um trabalho, era passatempo, era diversão. Limpar terrenos baldios e roçar mato, o trabalho menos árduo que realizava. Ainda trajava sua roupa surrada, seu chapéu de palha de abas curtas, suado na dobra, empretecido de fungos. As bocas da velha calça enrolada até as panturrilhas. Chinelas de dedos sofridas feito tudo nele. A mesma barba rala por fazer, os dentes encardidos de fumo. Não falou comigo pensava que não o via. Perguntou a sim mesmo o que estava fazendo ali. E chegou uma menina de seus treze anos. Reconhecia-a, era a sobrinha da mulher da casa do jardim. A pelo menos seis anos havia tirado a própria vida. Olhou pros quatro cantos da encruzilhada. E se foi. Alguns espíritos maus desta dimensão invocavam com aqueles trabalhos espíritos desencarnados que apesar de terem feito a travessia, não descansavam, vagavam no limbo. Alguns compareciam ao chamamento mesmo sem o saber porque. Como nada tinham a ver com aquilo, voltavam. Assim fez a menina. O homem rude ainda espantou cavalos e pos fogo num matagal, antes de voltar.
 
Ultramundo
Jardins na terra, por mais ínfimo que fossem, representariam outros dois tipos de jardim. Aquele de onde veio e regressaram a menina e o homem rude. Jardim das tribulações, herbário da expiação, pradaria da purificação, bem como o jardim mais elevado. Aquele que o povo hebreu vagou quarenta anos pelo deserto a procura, jardim donde emanava leite e mel, para onde toda alma boa deve almejar ir um dia. Aquele de onde o homem e a mulher que vieram do pó acabaram expulsos. E que alguns chamam de paraíso, outros de jardim do éden. Preferimos jardim dos encantos e desencantos. Por isso esperava.


Fabio Campos      

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