Labirintos

“Em verdade te digo: nesta noite mesma, antes que o galo cante, três vezes me negarás.” – Mateus 26,34

Tão longe se encontrava dali. Muito além, dos telhados das casas. Talvez num país dos sonhos. Para além do horizonte. Donde um novo dia se pronunciava. Estrela Dalva resignada assistia a invasão do monarca sol, instalando seu etéreo reinado de doze horas. Seu corpo se havia. Coberto, jazido sobre o leito. Talvez não tivesse consciência de ter acordado. Apenas o movimento da respiração, acusava vida. Ainda de olhos fechados permaneceu por mais tempo. O morno de seu corpo entranhava-lhes as carnes, debaixo dos lençóis. Uma preguiça de estimação, de modo algum o permitia tomar as rédeas do consciente. Ainda assim tentou lembrar como, e qual fora, o dia anterior. Nada. Semi-acordado sentia transcorrer infinitésimos espaços de tempo, segundos, minutos e nada. O homem se quer se lembrava quem ele era. Absolutamente de nada lembrava. Não, não era comum, acordar e não lembrar qual tinha sido o dia anterior, muito menos quem era aquele que lhe habitava o corpo.

Abriu os olhos. A baixa luminosidade forçava a dilatação das pupilas, esforçou-se para reconhecer o ambiente. Era um quarto pequeno, bastaria estender o braço e tocaria uma das paredes. Ao pé da cama um criado-mudo, um abajur apagado. Um ventilador, obediente cumprindo sua função, muito embora dizendo: não. Uma janela tomava praticamente quase toda a parede oposta. Cortinas escarlates filtravam um irrisório feixe de luz que ensanguentava as paredes. Tomando coragem sentou-se na beira da cama. Se tivesse sido mais minucioso na sua observação, teria visto, ao lado do ventilador, uma carteira de couro, um maço de cigarros aberto, um óculos, uma vela apagada, uma caixa de fósforos. Um copo com água. Para que será que servia aquele pequeno comprimido branco num pires? Maquinalmente levou-o a boca, e engoliu com o auxílio de um pouco d’água. Se tivesse percebido que fazia aquilo todo dia, seria avanço. Dirigiu-se a porta, girou a maçaneta. Abriu. Havia uma sala com sofá e centro de tampo de vidro. Uma porta que naturalmente acessaria a um banheiro. E um corredor que levava a cozinha. 

Optou por ir ao banheiro. Ao abrir a porta, assustou-se, ao ver sua silhueta projetada sobre o espelho do toucador. Era a de um homem velho, de longos braços, e de um tórax avantajado. Hesitou em acionar o comutador da lâmpada do toalete. Tinha medo. Precisava de algo mais para encarar aquele si mesmo. Recostado ao umbral da porta, buscou fundo, o que mais poderia saber sobre aquele homem estranho, projetado na camada de prata, junto ao toucador, ele próprio. Aqueles cabelos grisalhos revoltos lembravam seu pai. Denotava ser um homem que na juventude tivera que trabalhar no pesado, porque não nascera em família abastada. Somente intenso serviço braçal poderia ter lhe dado tal corpanzil. Aquele homem que não era ele, talvez tivesse que acordar de madrugada, para trabalhar no abate de suínos. Os dedos nodosos, nas mãos enormes, cuja aliança de casamento jamais sairia facilmente, talvez tivessem adquiridos tais nós, com o manejo do cutelo, fatiando com habilidade as carnes, e as vísceras dos rosados suínos, de olhos serrados. Cujas cabeças separadas do corpo, em cima duma tarimba, pareciam sorrir. E quando pegava um tacho para encher de água, a aliança se chocava contra o metal, produzindo um som de ouro e bronze. Quem sabe aquele homem, tivesse guardado numa caixinha de madeira, uma medalha de honra ao mérito, que ganhou porque um dia esteve à frente de uma tropa da polícia, e combateu na década de trinta, o cangaço no sertão. A verdade é que não se sentia aquele que estava lá. 

Aquele homem, que sua própria imagem projetava, por certo seria seu pai. Tudo nele, naquele instante remetia a ele. A rudeza de seu corpo. Como não tivera uma vida fácil, era homem de coração duro, de pedra. Recordava de como tratava a ele, e a seus irmãos. E de como achava suficiente prover o lar naquilo que fosse necessário. Recordou de uma única vez em que lhe chamou, para uma conversa de pai pra filho. Poucas foram as palavras, porém nunca as esqueceria. Perguntou-lhe o que pretendia da vida. E apenas quinze anos tinha. Lembrou de sua mãe que fora uma mulher muito doente. E que muitas vezes vira seu pai chegar à casa de manhãzinha, e sorrir. Porém ela não devolvia o sorriso. E iam dormir. E dormiriam o dia todo. E a mãe concebeu e deu a luz a um outro menino. Mas era uma criança muito doente. E a avó do bebê, muitas vezes viria auxiliar sua filha, no período de convalescença que chamavam de resguardo. E o menino doente chorava muito. E aquele homem, que não era ele, se aborrecia com o choro porque precisava repousar. Isso doeu profundamente na pobre mãe. E o irmãozinho doente, nem completou um ano, morreu. E o galo cantou.

Toda primeira sexta-feira de cada mês ia a mãe, puxando o menino pelo braço. Ia cumprir a sua devoção de rezar o santo rosário, e assistir a missa matinal na igreja matriz da paróquia de Santo Antonio. Era uma promessa por uma graça alcançada, a visão do filho recuperada. Vou contar como foi. Foi assim, um dia o menino saiu pra brincar com os colegas. Tinha por volta de nove ou dez anos, acho. Inventaram de caçar passarinho. Embrenharam-se na mata branca. Não adiantava negar depois pra onde tinham ido, seus corpos denunciaria. Caso fossem tomar banho de barreiro, o azinhavre na pele. A caatinga também imprimia suas marcas epidérmicas, riscos de rasga-beiço, calombos de urtiga, mordidas de formigas. Noutros tecidos, pega-pinto, nódoas de pinhão roxo, caju, sumos e cardos, além do aromático perfume das frutas temporãs desfrutadas impregnavam a roupa. O menino tentou apanhar um ninho de uma codorna que estava para além dum pé de labirinto. O avelós que o farmacêutico chamava de Euphorbia tirucalis foi deitar sua seiva leitosa justo nos olhos do menino, e ele ficou cego. Naquele tempo frei Damião, o frei capuchinho, peregrinava pelo sertão pregando suas santas missões. E a mãe levou o menino cego, pro frei impor-lhe as mãos. O menino ficou curado. E cresceu tornando-se belo varão. E já homem feito, deu-se em casamento a uma bela jovem, que era devota de Nossa Senhora de Fátima. Um dia a esposa chamou seu marido, para irem a uma missão do frei capuchinho, e teve que amargar uma frase de deboche, porque a única coisa em que seu esposo acreditava, era na força do trabalho. O mundo o havia tornado um empresário bem sucedido. Porém o capital tornara-se seu deus, somente nele acreditava. E o galo cantou, pela segunda vez.

Na nossa história daria de aparecer João Pedro. Belo menino, de feição angelical. O dúbio prenome advindo do avô, e do pai. Ao pequenino uma rígida instrução catequética. O primário em colégio de freiras. Paulatinamente teria sua existência, modulada dentro de princípios cristãos. O amor maternal, aliado a um desejo pessoal, alimentava a esperança de vê-lo um dia, abraçar a vida sacerdotal. A mãe sempre que tinha oportunidade fazia questão de lembrar-lhe, quem eram seus padrinhos. Cobrava-lhe a benção, se esquecia de pedir. Um dia contou-lhe em detalhes como tinha sido a cerimônia do seu batizado. Foi um dia de júbilo, um dia de festa, para toda a família. Seu padrinho, homem influente na política partidária da capital, tomou vinho mais o compadre e nunca mais apareceu. O padre, além de administrar o sacramento da igreja, no mais novo irmão de Cristo, fez questão de aspergir água benta em todos os cômodos da casa. 

Como as páginas de uma bíblia aberta, soprada pelo vento, o mundo soprou vertiginosamente as folhas do tempo. João Pedro deixou a infância pra trás. E uma vez jovem, não se decidira que sacramento abraçar: vida matrimonial ou vida religiosa? Mas Leviatã, o príncipe das trevas, sacudiu o rabo. E o belo varão de nome evangélico, deu de duvidar em seu coração, que Jesus Cristo jamais se incorporava na hóstia, perante a consagração no altar. E disse pra si mesmo que ia provar isso. Numa áurea manhã, de domingo foi à missa. Se introduziu na fila da comunhão. O pão sagrado foi recebido. Em surdina, saiu de sua boca para a mão, e da mão para o bolso. Uma vez em casa João Pedro dirigiu-se ao seu quarto. A alva célula eucarística, ele a depositou sobre um banco de madeira, e passou horas fitando-a. Estava decidido. Erguendo um martelo a cima de sua cabeça, desceu com toda força sobre a partícula do pão consagrado. Seu rosto, seus braços, as paredes do quarto tudo que havia ali ficou tinto de sangue. Cantou o galo, pela terceira vez.

Fabio campos

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