Havia uma estrada, e ia andando.
E se deu conta, que todos os dias sobre ela ia. E era uma manhã de baia de
cavalos, e feno dourado que lembrava campo de girassóis, num amarelo Van Gogh.
Um dia que negava quase tudo. Dizia uma não brisa, na copa das árvores. Um não
azul de natiê, no teto do mundo. Um não querer, ao menos não querer, que fosse
daquele jeito. Olhando assim tudo parecia muito velho. Tão velho de tempo.
Velho de mesmas coisas, de velhas angústias. De sapatos acostumados ao mesmo
chão. De blusões que ao chegar a casa iam pendurar-se no cabide, atrás da porta
do quarto. E lamentariam a chegada do verão, e tristemente esperariam pelo
próximo inverno. E chorariam lágrimas de desgostos, e de mofo desbotariam.
Quem sabe fosse outono no
hemisfério norte. E era muito provável que alguém naquele instante, se não estivesse
vivendo, ao menos já teria vivido sua outra história. História de querer viver
de desenhos e pinturas, porque era o que mais gostava de fazer. De sonho
alimentado de quando tinha quinze e poucos anos. De ter um irmão de quem muito
gostava, e admirava seus trabalhos, de exímio desenhista que era. Sonho de ir
morar em Londres, de conhecer outros pintores e com eles interagir, e trocarem
experiências, mas também divergir de suas ideias. E tempos depois querer morar
em Paris, de ir estudar na escola de Belas Artes. De ter um amigo a que muito
confiava, porém se desentenderiam profundamente, e se distanciariam um do
outro, e por isso cairia em depressão, porque não valia a pena se desentender
com o melhor amigo, ainda que o motivo da desavença fosse uma linda mulher. E devido
a influência religiosa de família, querer ingressar num mosteiro pra estudar
teologia em Amsterdã. De impressionar-se com o trabalho de mineiros pobres do
subúrbio de Haia. De produzir uma série de desenhos à lápis, usando técnica de
jogo de luz, tendo o ser humano como principal tema. E deixar-se apaixonar pela
vida bucólica, a ponto de querer viver o resto da vida, na zona rural em
Holanda.
E o caminho ainda se havia. Lá
longe antigas fachadas de casas, de velhos telhados que de mais nada entendiam
que não fosse telhar. Nos seus ápices, velhos e cansados, sempre os mesmos
pensamentos deslizavam. Não tinha certeza se contra sua vontade, porém vinham
encontrar-lhe, quase sempre nos mesmos lugares. Como se em cada lugar, um
pensamento resolvesse morar. E permaneceriam ali. Presos numa estação de fóton
energia, que somente seu dono tinha o segredo, o código, a chave para
colocá-los em liberdade, ao menos quando por ali ia passando. Uma vez
passageiro da espaçonave chamada mundo, novas divagações vinham resgatá-los, a
cada manhã. Admoestados de sol e sofreguidão, corpo físico e metafísico, de
músculos, vasos e veias irrigados, por energia cósmica percorridos. Células
neurais, cada uma delas, dentre as milhares existentes, eletricamente ativadas,
em sinapses de nauseabunda vertigem, colocando amaro gosto entre palato e assoalho
lingual. E se aceitasse como delírios, tudo poderiam ser bem mais fácil, era só
aceitar.
Ao chegar à escola, propôs aos
seus discípulos que produzissem um nu artístico, e fez questão de ser ele
próprio o modelo. E acabaria ficando excitado porque entre seus aprendizes
havia meninos e meninas. Sentir tantos pares de olhos pousados sobre seu corpo
desnudo, penetrando-lhe no mais íntimo do ser, percorrendo cada fibra, cada
detalhe, desconsertou-lhe. E era como se o grafite dos lápis lhe perfurasse as
carnes. De invadido passou a invasor. E se pôs lascivo. Não lembrava jamais ter
se sentido assim, como se mantivesse uma relação pansexual, com todos os seus
discípulos. A masculinidade exarcebada, tendo seu membro viril, saído do estado
de repouso, o que infelizmente interferiria em todo o resultado da obra. E
houvera múltiplos orgasmos.
Foram necessários muitos dias pra
se recuperar. Muitos momentos de perda de equilíbrio emocional, da falta de
identidade de si mesmo. A ponto de sentir-se ridículo, a um momento pelas
atitudes pouco ortodoxas. Na falta de intimidade com o espelho, na aparência
física, a muito custo aceita. A quase negação da carcaça, atrelada a seu
espírito. E isso era mais do que suficiente para querer afogar as mágoas no
álcool. Não possuía baixa estatura, não sofrera o infortúnio de ter tido na
infância uma atrofia óssea incomum, a ponto de ficar com baixa estatura, como o
amigo parisiense, porém, rejeitava a cor que tinha, e isso era suficiente para
sentir-se, rejeitado por si mesmo. Herdara na pele, alta melanina, da tez
materna. O pai era branco. E já ia o meio dia quando sentiu-se Henri
Toulouse-Lautrec. Na sua cor, nas suas aquarelas, nos seus guaches, cheios de
luz. Abrasados de tons amarelos, dos cabarés que frequentava, e das prostitutas
que desenhava e pintava. Descontraídas, desleixadas, se quer sabiam que lhes
servia de modelo. No começo era cerveja e vinho, mas o gosto foi ficando apurado.
E as bebidas finas, acabaram substituídas por destilados fortes. Era a fase do
prazer oral.
Fabio Campos
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