O Pintor do Diabo

Darei de contar história, que só serve pra se contar de noite. Noite, em que os ventos vão uivar pelas frestas das portas, a se tornarem sombrios assobios, lamurioso uivo. Vindo provocar calafrios que dariam de ir percorrer o mais profundo do ser que sentiu. E só o sabe o quão horripilante seria os que já passaram por isso. Já muitos anos se passaram desde então, porém uma única vez, nos lembramos de ter sentido. Já  muitos anos se vão. E me foi tão marcante, que desde já ponderei mil vezes, se enveredava ou não, na arriscada e difícil empreitada de contar.

Naquela rua morava um pintor. Na verdade um artista plástico, pois pra ser pintor bastaria que pintasse, fosse o que fosse. Ele morava na casa da esquina que dava acesso ao chafariz municipal. Ao lado da casa, ficava a cadeia pública, um bloco solto, quadrado. De concreto e argamassa, sobre si mesmo erguido. Em dois pavimentos soerguidos, um térreo e um superior. Dois pares de janelinhas laterais. As duas da parte inferior, ornadas de vigas de aço enxadrezada, de tão velhas enferrujadas. As duas superiores, ornadas de madeira almofadada e envidraçadas, todas traziam sinais maciços do desgaste do tempo. A porta única com três degraus de acesso, em tudo, lembrava a antiga cadeia da sua terra natal. O sóbrio prédio da cadeia pública era ponto limítrofe entre duas ruas. Rua Vigário Belo lado da casa do pintor. Rua Nossa Senhora da Piedade, do lado contrário, mas que todos só chamavam Rua da Piedade. Dando-se um giro de trezentos e sessenta graus, ficava-se de frente pro mar. Esplendor de dois tons azuis, um deles esverdeado, com espumas brancas. E davam-se de se tocar. O que era etéreo flutuava no ar. E de um infinito ao outro acabavam fundindo-se, tempestuosamente tendo que vir morrer na praia. Trazendo de lá longe, barcos, homens com cheiro de peixe, marisco e maresia.

A primeira visão veio quando olhou pra data, afixada em alvenaria de alto relevo, na base da torre central da igreja: 1638. A igrejinha era muito menor que a cadeia, ficava lá adiante. Seguindo a fileira de casas da rua, todas olhando pro mar. O campanário, ao lado, arribado numa trave, de badalo, pendido numa velha corda, carcomida pelo tempo. Madeira, pintura e aço todos comprometidos pela salina. As três torrezinhas floreadas em frisos misturando rococó e barroco, dizia: Igreja branquinha de doer, feito pelo de carneirinhos, entornada de azul claro nas bordas! De certo, lá no altar-mor, aos pés da imagem da virgem santa, anjozinhos só cabeças e asas, olhar nipônico, bocas minúsculas de quase sorriso. E viu a caravela chegando, trazendo trezentos negros nas entranhas, e trezentos anos de história separavam tudo a todo momento. O altar-mor, o alto mar, a nau imponente, porém resignada, balouçava ao remanso das ondas, touro bravo, domado pelo laço e o pesado aço da âncora, descida ao fundo. Não podia avançar mais do que havia avançado, sob o risco de se espatifar sob os arrecifes de corais, que formavam uma barreira natural no arrebol. Ainda mais perigosos e ameaçadores, quando a maré ia abaixando. E deu de iniciar chuva fina, que se vinha sempre no cair da tarde, tornando úmida, a mata que circundava a vila, que circundava a entrada da noite.

Os escravos, homens, mulheres, trazidos até a praia nas pequenas embarcações, adornados por grilhões e correntes, que lhe iam atando os pés, e grotescamente lhes uniam pelos pescoços. E chegavam tão fracos, e tantos dias haviam ficado na mesma posição, que os músculos desacostumados lhes imprimiam dificuldade no andar. E nem se davam conta que faziam história. No caminho antes de chegar à cadeia, um dos escravos, tombou sob as grandes pedras do calçamento. Calçamento feito por mãos de irmãos seus de sangue. E defronte da igreja iam. O capataz, do senhor dono do lote daquelas vidas humanas, muda ordem recebeu, aproximou-se do negro estendido no passeio. Sem dizer palavra, iniciou uma série de chicotadas com um relho de couro, cheio de esporões de ferro pontiagudos nas hastes que abriam enormes cortes no dorso do negro. Negro sangue do negro, jorrava. E salpicava de negro sangue, a negra pedra. Dentro da noite luzidia, de fina garoa que caía. E o bisavô do pintor da Rua Vigário Belo, que era  mercador de escravo, tendo consciência ou não, ia pintando seu mais macabro quadro no cais do porto de pedras. Pedras tão duras quanto o coração do algoz. Duras quanto o dono daquele lote de vidas humanas de cujas cor da pele perante ele, tornavam-se seres inferiores. 
  
E como se do nada, apareceu uma mulher, que trazia um véu sobre a cabeça, as vestes brancas reluzentes lhes desciam até os pés. Disseram em jura, os que observaram aquela cena que do rosto da bela dona emanava uma luz que iluminava toda a extensão da rua.  E tomada de coragem, resoluta a madona segurou na mão do capataz. Pedindo com humildade porém com veemência e sagacidade, que parasse de açoitar o pobre escravo. O homem embrutecido nos atos, não tinha a menor intenção de interromper seu ato vil. Intencionava sim, dum safanão livrar-se da religiosa, pois assim a julgava ser. Dizia em si mesmo, só podia ser uma freira, vinda ou ida, do convento das irmãs carmelitas. Cujo convento ficava no fim da rua. Porém, paralisado ficou o brutamonte ao encará-la. Havia algo nos olhos daquela mulher que lhe encheu de horror. Crispou-lhe o semblante, e como se aquela mão lhe queimasse as carnes do antebraço, por onde fora segurado, se desvencilhando saiu em desabalada carreira. Aos gritos, despencou em direção a praia. Chegando ali entrou no mar, e nunca mais foi visto.

Professor Zenofonte, era pintor. Não era a primeira vez que era convidado a ir a sua casa, porém foi naquela vez que teve à segunda visão. Aliás, não cria que podia ser considerada visão. Uma vez que se apresentava tão real, distante de algo metarreal, muito menos insanorreal. Tudo estava lá, ele mesmo podia tocar. Estavam no sótão do velho sobrado. As telas caprichosamente pintadas. Talvez um total de trinta e três delas ali estavam. Estendidas em cavaletes, cobertas com lençóis brancos, que foi retirando um a um. Cheios de poeira e fungos admirava-as. Bancada transmutada em arte, de tantos restos de tintas por descuido derramadas. Repleta de pequenos objetos: estiletes, trapos tintos, copos de louça branca, melados de tinta ressecada. Jarros cheios de pincéis de pelo de camelo de diversas espessuras, e tintas, em fracos de cores opacas. Vernizes cristalizados, laca de garância petrificada. Tudo entrelaçado por teias de aranha. Senhor tempo se encarregara disso. Entre as obras, naturezas mortas, paisagens retratavam as ruas da cidade, em tempos de outrora.

E lhes apareceram mulheres nuas. Lindas mulheres, negras, morenas, brancas. Numa diafaneidade jamais imaginada, desfilavam como que se flutuassem, como se noutra dimensão se encontrassem. E aproximando-se, lhes faziam carinho. Carinho insano, inumano afago. E lhe lambiam a face, de barba apontada, lhes intumesciam o lóbulo da orelha. Toque sensual que eriçavam-lhes os pelos da nuca. Cobertas de sangue acariciavam-lhe o sexo semi rijo. Suas vastas cabeleiras, negras, volumosas, lisas e encaracoladas desciam-lhe pelo colo, e contrastavam com os pelos da púbis. Os longos seios fartos roçavam-lhe o rosto, e deles, emanavam adocicado cheiro de leite das impudicas mamas. E lhes vinham as cenas de maus tratos aos seus parceiros, no leito da rua. Vastas coxas carnudas, de escravas, retalhadas de faca. De cujas vaginas em flor despetaladas, brotava néctar em puro licor, em tons vermelhos. Como se acabassem de serem defloradas, a força. E foi se aproximando das telas até perceber que algo grotesco, desumanamente real ocorria. O bisavô de Zenofonte, Zoroastro da Hora, o mercador de escravos, também era pintor. E pra pintar aqueles quadros havia usado sangue de escravo. Tudo pra dar mais realidade as suas malditas, insanas e seculares telas.

Fabio Campos     

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