Sete Casas, Sete Pecados

Essa é história de infantes, que já foram dormir, ou quem sabe envelhecidos, jubilosos. E darão de contar, sobre tempos de outrora, dum chão de giz, num risco de avião. De ir aos pulos, de casa em casa, algumas num pé, pra noutras apoiar os dois. E ir chutando um caco de telha. E hoje, passados mais de dez lustros, o sentido da brincadeira vir dizer. Duma caminhada da vida, onde, ora estaríamos seguros, apoiados nos dois pés, pra noutros momentos passar por perigos físicos e espirituais, e ter de ir pulando num pé só. Porém a meta final, a que todos almejariam chegar quem sabe viria o céu.

Na rua dessa e daquelas infâncias tinha quatro casas. Aliás, como toda rua tinha muitas casas, porém quatro delas interessam-nos falar no momento. A casa da minha vó. Segundas-feiras, dia de feira livre, ficava cheia. Gente humilde, vindas dos sítios, de quase toda redondeza arranchavam-se lá. As montarias amarradas embaixo dos pés de fruta. Tinha um pé de fruta do conde, que a gente chamava de pinha. Um limoeiro baixo, de estender a mão e pegar limão. Uma goiabeira alta, de ter que tacar-lhe varadas para conseguir goiabas. No oitão do lado da nascente, um monte de panelas de barro todas emborcadas, pra não encher d’água da chuva. Sapos e grilos aproveitavam pra fazerem sua morada. Naquele lado tinha uma janela que de tanto viver fechada, criara limo nos encaixes. A misteriosa janela da dispensa de minha vó, que nunca ninguém veria aberta. Uma velha calha de zinco entortada pelo tempo, presa por pedaços de corda de agave aos caibros roliços, ia terminar num tonel revestido de argamassa enegrecida de musgo, apropriada para se camuflarem as jias. De dia, o sol vinha dourar o granito dos paralelos da rua. Nas noites enluaradas, pelo mesmo caminho traçado pelo sol, viria a lua, desta vez prateando o calçamento. 

Meus avós tinham compadres protestantes. De manhã cedo chegavam. Por horas discutiriam religião. Descrentes da santidade de Nossa Senhora desdenhavam: “-Nossa Senhora? Senhora de vocês! Minha mesmo não! Virgem? Não acredito!” E havia um moço chamado Zé Costa, que não era protestante, nem compadre, nem parente dos moradores daquela casa. Era só um bom moço. Ia até lá, porque queria namorar uma das donzelas da casa. Prestativo feito cão de caça. De pouca fala, respondia apenas o que lhes era perguntado, talvez receoso em deslizar na arredia língua portuguesa. Para agradar a pretendente, cercava de cuidado, os da casa. Ia muito longe buscar água, mas moça que é moça não dá valor a esse tipo de trabalho. E quando o pobre moço se ausentava, minha vó ralhava chamando-as de ingratas pelos desagravos. Apesar de que a água, vinda de tão longe, era salobra. Pra minha vó dedicação de um pretenso partido sempre devia ser reconhecida. Porém o pecado daquela casa, não era aquele orgulho. Era o orgulho por uma razão inexplicável, o padrinho de uma das meninas chamado Pizeca, que tinha uma pensão na outra rua, não ia até a casa da afilhada, nem os pais daquela, frequentavam sua casa. Quando viesse a páscoa a afilhada iria levar uma prenda, um peru cevado, e esperaria uma retribuição. Apesar de tudo permanecia neles, o pecado do orgulho. 

A rua era uma algazarra. Julieta e Terezinha eram irmãs e moravam na próxima casa, pelo lado do nascer do sol. E do viver da lua. Julieta na infância tivera poliomielite, por isso tinha os dois pés tortos, os dedos virados pra dentro. Terezinha tão jeitosa com os tecidos, os crochês, os filós, as rendas, e os fuxicos, principalmente com estes últimos. Enfim era pois costureira de mão cheia, de costurar pra fora. Pobre Julieta tivera dificuldade de aceitar o que o destino lhe havia reservado, invejava as moças que tinham os pés sadios. Diferente da irmã Terezinha tinha um coração bom. Mas nem seria a inveja o pecado retido naquela casa. Ainda havia uma maior tristeza no coração de Deus. Porque do coração de um pobre, ainda mais dos que padecessem duma enfermidade, não devia de ter escassez de caridade. Coração endurecido, que negava ajuda a um pobre, que lhes batia a porta. Isso pra Deus era ainda mais dolorido. E se podia se denunciar ali, havia o pecado da soberba, e da avareza.

Ainda faltava falar de três casas. A casa do lobisomem, do pederasta, e do ladrão. Primeiro precisamos saber que história é essa de lobisomem. De como em nossa história daria de aparecer uma figura tão lendária feito o lobo homem. Casteado era primo legítimo das meninas da primeira casa. Era o fato de ser muito esquisito nos jeitos e trejeitos, que levava-o a ser comparado a um lobisomem. Casteado tinha uma casa naquela rua, porém não morava nela, ou em canto nenhum. Desde a juventude a acromegalia, deformara seu corpo. Braços, rosto, testa, e queixo proeminentes. Mantinha nos lábios, um permanente sorriso imbecilizado. Na semana santa, nas luas cheias do mês de agosto diziam que corria bicho. Muitas vezes, pelos fazendeiros, contratado para serviços braçais, diziam, ter parte com o demônio, porque num serviço que normalmente levaria uma semana pra terminar, dava conta em um, ou dois dias. E depois comia com voracidade e esvanecimento de fera. Era comum encontrar Casteado amoitado em lugares ermos, fazendo sexo com jumentas, éguas e outros animais semelhantes. E sentia prazer em expor suas intimidades avantajadas. E se masturbar, pra moças e senhoras passantes verem. Aquele daria de amasiar no corpo, pelo menos sete demônios, que lhes imprimiam pecados da gula, e da luxúria. 

Um dia. Melhor dizendo, uma noite, minha vó chegou da igreja. Sentiu que sua casa tinha sido invadida, a porta da cozinha aparentava ter sido forçada. É preciso que se diga que era assim: quando era a boca da noite, depois da janta simples, onde não faltava um derivado do milho, regado a bom e encorpado café de caco, meu avô acendia seu modesto cigarro de fumo picado, com esmero manufaturado, numa fina folha de papel seda, branquinho de dá gosto. Saía, ainda na mesma rua, ia pra casa duns amigos, jogar baralho. Ali permaneceria até muito tarde da noite. O ladrão sabia de tudo isso, que minha vó ia pra igreja mais as filhas pequenas à tiracolo. Aproveitando-se do negrume da noite anuviada. Entrou pelo quintal passando com facilidade o cercado de arame farpado. Forçou o trinco da porta e entrou. Indo direto pro quarto, onde sabia escondido, a lata de manteiga do reino, onde minha vó guardava o apurado da venda de cocada, e doce de leite, que ela mesma fazia, e vendia em casa. Minha vó encontrou no meio do pequeno corredor o fitilho com que amarrava a latinha. Daí ficou evidente que algo havia acontecido. Pobre gatuno, faltas gravíssimas retinham n'alma. Era um que achava honestidade qualidade insuportável, aliado a falta de coragem de agir com lisura. Demônios se lhes refugiavam n'alma que infelizmente lhes imprimiria pecados da ira e da preguiça.

A derradeira casa que aqui relatamos, é a casa de Paulo. A respeito da casa de Paulo serei breve, e moderado no falar, ainda mais pelo desagravo em família. Homem do campo. Um camponês era Paulo, porém fascínio tinha pela vida urbana. Seduzia-o os encantos da boemia, de jogos e cassinos. Vestia-se com recato e cuidava-se com esmero, mormente as longas madeixas, empoladas de brilhantina. E depois de uma vida jubilada com Zefinha, companheira fiel. Depois dos filhos crescidos e criados, o comedido homem do campo revelou uma enrustida paixão por um mancebo, arrimo de família. A pobre companheira envergonhada, abdicou, já não mais tinha sentido ser a rainha daquele lar. Amargaria uma revolta incontida até vir a perecer. Sob endiabrados amores ardentes, de fogo fátuo, também pereceriam eles. E dos alagadiços iam se elevando aos céus, brando fumo da maldita fogueira das vaidades. 

Fabio Campos

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