Trinta Mil Dias

Noite alta, em negrito, pairada sobre o sertão. A torre da igreja, gigante de olhos fechados. Fabuloso maquinário abrigado ao cérebro. Descomunal engrenagem de contar o tempo.  Imperceptíveis batidas de coração, solitário. De repente, a folha de aço do sino, pelo badalo bigornada, e queda o silêncio desacordado. Uma trinca de compassadas badaladas anunciava às três horas da madrugada. Caminhando pela Avenida Coronel Lucena, ia o boticário Olegário Pimenta. Projetada do seu vultoso corpo, alongada sombra, feito cão de guarda, aríete espetando o calçamento a sua frente. Banhada de luz da lanterna do poste, a rua, as casas, a calçada. Seu Pimenta nem sabia mesmo em que pensava, talvez no cafezinho fresco que degustara a pouco na mercearia do compadre João Soares. Nas reminiscências que os demais companheiros trouxeram, só pra rirem e se divertirem. Mas como achava bonita a madrugada. Lembrava que lá trás na juventude tivera a intenção de lançar um livro, tantas coisas já escrevera.

“Já ia alta à noite. Véspera de fim de semana. Pelas ruas de Santana, alguns jovens, trajando seus impecáveis ternos de flor à lapela, e chapéus elegantes na cabeça. Um litro de bebida passando de mão em mão, violões e algazarras. Feito bloco de fantasmas vagabundos, vai entrando pela Rua do Barulho. Se vão deixando para trás, a melodia tonta perdida na etérea neblina, e vai esbarrando nos madrigais. E tenta, quase sem conseguir, deslizar pelas frestas da janela, da sacada da doce normalista que àquela hora dormita e sonha, sonho em que seu amado como que saído do livro de conto de fadas, montado em seu belo cavalo branco vem buscá-la. A cidade dorme. A lanterna do poste derramando sua luz alaranjada, encima do ladrilho onde outrora os passantes passavam apressados pros seus destinos. Becos escuros, cri-cri dos grilos, coachar do sapo, vidas inferiores nos ermos. Donde o bêbado arriado sob uma poça de urina também dormia, pesado e descompromissado sono dos justos. Lá longe o horripilante chiado da rasga-mortalha, sussurros, pragas de mau agouro. Ainda mais longe o galo, arribando a cabeça, estufando o papo, estalando as asas, explode num canto estridente, reclamando o dia que teimava em não querer amanhecer.”

Matinas (rezar as três da madrugada)
Agora Lábios meus
Dizei e anunciai
Os grandes louvores
Da virgem, Mãe de Deus
Sede em meu favor
Virgem soberana
Livrai-me do inimigo
Com vosso valor
Glória seja ao pai
Ao filho e ao amor também
Que é um só Deus
Em pessoas três
Agora e sempre
E sem fim Amém

O sargento reformado, negro Sedecias Boaventura, todos os dias, as seis da manhã, descia a ladeira que ia da Rua Benedito Melo pra antiga Rua do Sebo. Preferia ir pelo beco estreito, de calçamento de pedras largas que dava justo na oficina de Quincas sapateiro, defronte ao ateliê de Juca alfaiate. Na companhia dos dois rumariam pro bar de Seu Antonio Pacífico. Uma vez ali, a prosa tinha mote garantido, da boca de cada um, brotariam os temas de sempre. Quincas falaria de futebol, começando pelo Ipanema Atlético Clube, indo descambar pras bandas do Rio de Janeiro, os últimos clássicos no fenomenal tapete verde, do estádio Mário Filho, imitaria João Saldanha e Mário Vianna, da rádio Globo, narrando gols que marcaram gloriosas vitórias do seu “mais querido” Flamengo. Provocando vascaínos e fluminenses. Juca poria um ponto final na contenda futibolística trazendo-os de volta a Santana do Ipanema, e falaria dos últimos acontecimentos no cabaré de Dona Brejão, diria de um comerciante, um conhecido matador de porco, da Rua Tertuliano Nepomuceno, envolvido com duas raparigas, uma delas enciumada, acabaram brigando por ele. O triângulo amoroso teria terminado na porta da cadeia Pública. O negro Sedecias sairia com uma história no mínimo curiosa, o que já fazia parte do rol de fatos por ele contado. Teria dito que no último sábado, na hora do almoço, lá no sobrado, na Pensão de Maria Sabão, conhecera uma velha cigana, das bandas de águas Belas, que depois de contar verdades sobre sua vida passada, acabou lhe contando uma história.
“Seu sargento, pode me acreditar, antes de vir pra cá, esta noite eu tive um sonho, no sonho dizia, que ia chegar aqui em Santana, um homem muito sabido. Esse homem, vindo do Pernambuco, ia prever alguns acontecimentos muito importantes: a morte de um político, a morte de um padre, e (fez uma pausa, se benzeu três vezes, e concluiu profética) a queda da torre da igreja matriz de Senhora Santana! Mas é assim Seu sargento! Muitas vezes é preciso interpretar o significado aquelas palavras! A queda da torre pode ser o desaparecimento da imagem da Santa. Uma pessoa má pode vir a se apossar da imagem original. A que foi consagrada pelo bispo, e daí coloca outra imagem qualquer, no lugar. E quem vai sofrer com isso? O povo! O castigo vem pode ter certeza!”

Sexta (rezar ao meio-dia)
Deus vos salve, Virgem
Da trindade templo
Alegria dos anjos
Da pureza exemplo
Que alegrais os tristes
Com vossa clemência
Horto de deleites,
Palma de paciência 
Sois na terra bendita
E sacerdotal
Sois da castidade
Símbolo real,
Cidade do Altíssimo
Porta oriental
Sois a mesma graça
Virgem singular,
Qual lírio cheiroso
Entre espinhas duras
Tal sois vós senhora
Entre as criaturas
Ouvi Mãe de Deus
Minha oração
Toquem em vosso peito
Os clamores meus

Na pia batismal, registrado nos livro dos cristãos, filhos de Deus, e irmão de Jesus Cristo, como José Mariano Piano Quixabeira. Porém todos o conheciam desde o sítio Cava Ouro onde nascera, próximo ao povoado Riacho Grande, e em toda Santana Ipanema, pelo singelo apelido de Zé do Relógio. Do seu falecido pai, que era pernambucano, aprendera a arte de consertar as máquinas de medir o tempo. Consertava e fazia manutenção, desde um simples relógio de algibeira, ou de pulso, aos de pêndulo, indo até os colossais carrilhões de torre de igrejas. Por acaso nos encontramos na porta da igreja, a hora terceira. Não tão acaso assim. Todos os dias ele chegava, exatamente àquela hora aos degraus da matriz de Senhora Santana. Estava ali para fazer a manutenção do relógio da torre. Primeiro escutava as três badaladas, conferia a intensidade do som, o timbre do aço, e comparava a exatidão da hora, com um relógio que trazia no bolso, acondicionado dentro de uma caixinha de óculos. Somente depois disso iniciaria a escalada rumo ao maquinário no alto da torre. Neste dia porém, tinha uma história pra contar.

“Olhe seu moço, eu fui convidado pelo padre desta paróquia de Senhora Santana para consertar o relógio da Igreja que estava atrasando e sem manutenção fazia dias. Combinamos o preço, e tudo bem. Esse serviço que eu faço, não é fácil, é preciso entender de muitas coisas. O senhor por acaso, sabia que cada um de nós tem um relógio dentro da gente. Isso mesmo, ele está marcando os dias, as horas, os minutos, e os segundos que cada um vai viver. E está contando em contagem regressiva: quando zerar, morremos. É um relógio invisível ao olho humano, só Deus e os anjos do céu enxerga. Nosso anjo da guarda vê, e sua função é vigiar para que nada nos aconteça até nosso relógio de vida cessar. Meu pai contava que um dia a torre dessa igreja ia cair. Ia cair muitas vezes, mas iam ser levantadas outras no lugar. Depois de muito estudar foi que entendi, ele se referia não a torre propriamente dita, mas aos padres que passaram por essa paróquia, sempre que morria um padre era como se a igreja sofresse um abalo. Andei fazendo umas experiências e constatei que a torre está se inclinando, é uma inclinação de zero virgula zero, nove graus, por ano, para o leste. Quando a inclinação for tal que a vértice da base não fizer mais ângulo com o ápice da torre ela cai. Segundo meus cálculos isso ocorrerá daqui a trinta mil dias. Tempo máximo de dias de vida de um homem. E irá acontecer exatamente as três horas da tarde, hora em que Jesus Cristo foi morto na cruz.” 

Vésperas (Rezar ao cair da tarde)
Deus vos salve relógio
Que andando atrasado
Serviu de sinal
Ao verbo encarnado
Para que o homem suba
As sumas alturas
Desce Deus do céu
Para as criaturas
Com os raios claros
Do sol da justiça
Resplandece a Virgem
Dando ao sol cobiça
Sois lírio formoso
Que cheiro respira
Entre os espinhos
Da serpente a ira
Vós aquebrantais
Com vosso poder
Os cegos errados
Vós alumiais
Fizeste nascer
Sol tão fecundo
E como com nuvens
Cobristes o mundo
Ouvi Mãe de Deus
Minha oração
Toquem em vosso peito
Os clamores meus.


Fabio Campos

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