Carpe Diem

Jorge nascera num tempo em que as mães tinham seus filhos em casa. E ficaria muitos dias de resguardo em cima da cama. E mãe e filho receberiam os cuidados de uma ama. E se a mãe não tivesse leite, a ama amamentaria. E todo fim de tarde, Seu Joaquim o farmacêutico viria visitá-los. E lá na sala lhe seria servido chá com sequilhos fresquinhos feitos por sinhá Tonha, uma preta velha que viera do sítio Mulungu pra cuidar da cozinha. E o velho Quincas comentaria sobre o calor daqueles dias de verão, pois os homens naquele tempo ainda andavam de terno, chapéu de massa na cabeça, e deles que usava bengala. Antes de ir embora receitaria Água Inglesa, pra cólicas intestinais da mãe. E chá de Camomila para que tivessem sono tranquilo. E se recuperariam fortes e saudáveis, pois teriam os cuidados necessários. Além do que, filhos varões eram mais esperados e respeitados, no seio de família como aquela que tradicionalmente vivia da agricultura.

Esta talvez seja história que fale de bem viver. E de que no ato de viver devemos tentar tirar o máximo de proveito. Buscar valores que nos são passados de geração em geração. E de que a herança maior que recebemos, não são coisas, nem objetos. Mas o que herdamos dos nossos pais. Os valores morais, os traços físicos, as afeições cultivadas em família, ao longo da existência terrena. Portanto a família em que Jorge nascera cultivava como valor primordial a união entre os pares. Uma modesta casa na cidade, e uma propriedade denominada Sítio Mulungu, incrustada no meio da caatinga eram os bens que possuíam. A cada ano, quando se aproximava o inverno, os membros do clã viravam camponeses e iam preparar a terra. As culturas consorciadas, milho e feijão, pra subsistência. Palma e algodão de reserva. Havia pasto pra mantença de um pequeno plantel de bovinos, e algumas poucas cabeças de gado miúdo. A demais era divino, dos céus aguardar que viessem as chuvas.

 A casa da cidade era confortável. O mobiliário, apesar de antigo, bastante conservado, verdadeira relíquia. As paredes, revestidas de fotografias de toda herdade, em várias fases das suas vidas: bebês, jovens, e adultos. A cozinha da mãe de Jorge dava gosto de ver. Havia um belo bufê cheio de taças de cristal e xícaras de porcelana com paisagens bucólicas medievais, que fora herdado de sua avó materna. Havia uma mesa enorme de seis cadeiras de madeira maciça, muito pesada, herança do avô paterno. A principal parede daquele cômodo era ornada com o quadro em que Jesus ladeado dos doze apóstolos, fazia a última ceia. Encaixado em simples moldura, a gravura, em papel cartão, a impressionante pintura de Leonardo da Vinci. A mãe de Jorge ganhara o quadro de sua irmã Aurora, como presente de casamento, que ao lhe dar teria dito: “-Mande benzer. E enquanto você tiver esse quadro na parede de sua cozinha, jamais faltará alimento em sua mesa.” A mãe de Jorge teria tido dezenove filhos. Doze nascidos varões. Onze deles ganhariam os nomes dos apóstolos que apareciam escritos abaixo de cada apóstolo, no quadro da derradeira ceia de Jesus. Bartolomeu, Jacó, André, Pedro, João, Thomas, Felipe, Matheus, Tadeu. Simão virou Simeão e Jacó II, Jácomo Luiz, que todos só chamavam Luiz. E Mário Jorge, que os pais só chamavam pelos dois nomes quando era pra repreender. O décimo segundo filho não tinha como dar-lhe o nome de Judas Iscariote.

E vieram sucessivos anos de estiagem. As propriedades rural, transfiguradas em verdadeiros desertos obrigavam os sertanejos a buscar alternativas outras de sobrevivência. Sem inverno se consumiam as reservas de grãos dos vasos. O gado morria de fome. Em tal situação era comum o esteio das famílias de sertanejos, os pais de família, viajarem em busca de garantir o sustento da prole. O pai de Jorge foi embora, pra trabalhar na indústria têxtil de Delmiro Gouveia. Depois foi trabalhar de peão na usina de Paulo Afonso. Ali aprendeu a profissão de operador de máquina pesada. Não demoraria, foi embora pra São Paulo, exercer sua nova função na construção civil. Nos primeiros meses mandava dinheiro pelo correio. Aos poucos foi se desobrigando desse compromisso. Chegaram boatos que constituíra nova família no sudeste. Depois notícia nenhuma dele, tinha mais sua família do sertão.

Quando fez nove anos de idade Jorge adoeceu, de um mal que lhe comprimia os pulmões. Talvez tivesse asma. Tanto seus pais, quanto seus irmãos mais velhos eram todos fumantes. O fato de estar diariamente se expondo à fumaça de cigarro, em idade pueril, contribuiu para levá-lo aquele precário estado de saúde. Depois de uma consulta, o médico receitou uns remédios, e também recomendou que o menino passasse um tempo num lugar onde respirasse ar puro. Por conta da doença, Jorge foi obrigado a viver longe da família. Por dez longos anos o menino viveu no campo, sendo criado por sua tia Aurora, no Sítio Mulungu. Esse exílio forçado faria com que fosse o único dentre os irmãos que não teria tido a oportunidade de estudar. Vivera quase como um ermitão. Sua escola foi o mato aprendeu a valorar exclusivamente as coisas do campo. Conhecia os sinais dos céus, entendia se estava próximo o início das invernadas.

Findo esse tempo, recuperada a saúde, Jorge agora um rapaz, voltou à cidade. No entanto não mais se acostumaria à vida urbana e voltou pra vida rurícola. Porém sentia-se na obrigação de manter a casa de sua paternidade, com os irmãos mais novos que ainda permaneciam em casa. O dia nem havia clareado, encangava uma parelha de bois, ia até o barreiro enchia pipas e ancoretas, e abastecia d’água a casa materna. Do silo tirava milho seco, passava no moinho e não deixava faltar fubá. Uma única vaquinha, mantida no tempo seco, garantia o leite. Ovos e carne sempre havia da sua criação de galinhas. No grotão não faltava uma abóbora de caboclo, um cacho de bananas, uns tomates. E Jorge sem o saber conseguia perpetuar uma premonição ditada por sua tia Aurora, ao dar de presente o quadro da Santa Ceia, a sua mãe, que nem mais se lembrava daquele adágio em que disse: “Enquanto o quadro permanecesse na parede da cozinha, o alimento estaria garantido naquela casa.”

Muito tempo se passou. A mãe de Jorge padecendo de doença grave veio a falecer. Sua tia Aurora deixou o Sítio Mulungu, e foi morar na casa da cidade, pra terminar de criar os filhos da irmã. Todos cresceram, estudaram, se formaram e foram embora. Apenas Jorge permanecia sozinho eremita no Sítio Mulungu. Pelo menos uma vez por ano, os irmãos marcavam um local, a casa de um deles, onde se reuniam para confraternização natalina e de final de ano. Deles que residiam em São Paulo, vindo de avião até Maceió, chegava a sua terra natal em carro de luxo, fretado.

Naquele ano o local marcado foi à casa materna. Eis que na noite do réveillon, os dezoito irmãos se encontravam na casa onde a maioria deles nascera. No momento em que os relógios marcaram meia-noite, enquanto todos se abraçavam, brindavam com taças de champanhe e se deliciavam com as massas de forno e peru, mais um daquela descendência acabara de chegar, era Jorge. No seu jeito tímido de homem rude do campo, de pouca conversa, cumprimentou e abraçou a todos. Cada irmão, disse naquela ocasião que ia levar uma lembrança da casa da mãe. Taças de cristal, xícaras de porcelana foram parar nas malas. Jorge quis o quadro da parede da cozinha. Antes porém uma foto foi providenciada, onde os doze irmãos nascido varão sentaram-se à mesa. Estranhamente se colocaram na mesma posição em que se encontravam os apóstolos, que lhe emprestaram os nomes, no quadro que aparecia ao fundo do instantâneo. A Santa Ceia, por aquela irmandade reproduzida contava também com a presença de Cristo.   
     

Fabio Campos

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