Carnal Vali

Era manhã de carnaval. O primeiro dia da semana. O segundo de folia. Ainda de ressaca, a rua aos poucos acordava. Alegorias nos postes de energia elétrica balançavam ao vento. Alegres espantalhos arremedavam os frívolos trejeitos dos foliões. O calçamento, sisudo de pedra o ano inteiro, ainda agora retinha o pó do mela-mela, os corantes coloridos, dos lança-perfumes. Confetes e serpentinas se enroscando nos fios, caiam e desciam pelas sarjetas. Lantejoulas e purpurina que se haviam largado das fantasias requisitavam os raios de sol pra continuar refletindo seu brilho colorido.

Na praça, um tablado servia de palco. Capitaneado por negras caixas de som amplificadas. Em posição de sentido, aguardavam a bandinha do Mestre Bulhões. Os borboleteantes cavaletes de partitura com as asas fechadas, dormiam. Os inseparáveis casais, magérrimos cambitos dos taróis e caixas, e rechonchudas baquetas dos bombos, escondidos descansavam. Cuidadosamente guardados em esquifes luxuosamente forrados de seda e veludo azul, os metais dormiam o sono dos justos.  Não seria necessário muito esforço, pra ouvir retinindo nos tímpanos recorrentes, os acordes dos trompetes e tubas, na cadenciada harmonia da festa de Zé Pereira e Juvenal. Aquilo permaneceria por longos dias.

"A Praça Castro Alves é do povo
Como o céu e do avião
Um frevo novo,
Eu peço um frevo novo
Todo mundo na praça
Muita gente sem graça no salão"

Sobrevoada pelo condor, a praça agora era solidão. Em raios de sol, se acordando da ilusão. Aqui e acolá um folião, arriado em baixo das marquises das lojas. Rodrigo amanhecera na rua. Pondo-se sentado, talvez achasse interessante o dia vir lhe acordar quase sem cobrar nada. Apenas dizendo-lhe: “-Sou delírio. Mas não se importe.” Daí se deu conta que havia ainda três dias pra sonhar. Esquecer de não lembrar, que uma vida melancolicamente lhe aguardava, pra quando ele quisesse voltar. Carmem, infelizmente assim não entendia.  Do jeito que se encontrava, com a fantasia de pirata semi destruída, mais parecia um náufrago. Como que sobrevivido numa ilha de delícias e maravilhas. 

“Eu sou a filha da chiquita bacana 
nunca entro em cana
porque sou família demais
na minha ilha que maravilha”

Ajuntando forças, tirando donde não tinha, Rodrigo resolveu ir pra casa. As coisas não estavam bem definidas. E como era complicado tentar entender o que não era entendível. Principalmente, quando não era pra entender. Se pudesse, pararia de pensar, fosse lá o que fosse, pararia. Mas isso ele não podia. E vinham as lembranças de Carmem, do dia que a conhecera ainda menina moça. E a conhecera num dia de carnaval. Já ia descendo a ladeira da Rua Zé Amorim, quando ouviu balburdia. Som ululante de gente e instrumentos musicais. Com destaque pra sanfona e o triangulo. Um bloco vinha pela Rua Tertuliano, resolveu esperar. Sentou-se na calçada. Era o bloco dos cangaceiros, Paulo Preto, lá do Bebedouro, de cabra da caatinga trajado, ao ver o amigo, chamou-o para o acompanhar.

"Acorda Maria bonita
Acorda vem fazer o café
Que o dia já vem raiando
E a polícia já está de pé”

Uma garrafa de cachaça, passada de mão em mão, foi parar na sua. Entornou goela abaixo uma quantidade considerável do conteúdo. Teve ânsia de vômito. Instintivamente encostou o dorso da mão sobre a boca, como se aquele gesto pudesse evitar o pior. Tentou se concentrar na marcha, na música, no umbu que alguém lhe deu. O cheiro forte de cana nauseante. Estava lançado o desafio, lutar pra que aquele líquido, por seu organismo rejeitado, dentro de si permanecesse. A batalha teria sido vencida. Alívio. O bloco chegou à frente da igreja Matriz, se dirigiram pro Cassino de Seu Lira. As portas estavam fechadas. Porém havia pessoas lá dentro. Foi providenciado para que apenas os componentes do bloco, e seus acompanhantes pudessem entrar. Permaneceriam bebendo, e bebendo, e cantando e tocando até o cair da noite. E na praça do povo, do avião e do condor, se fez mais uma noite de frevo.

“Você pensa que cachaça é água
Cachaça não é água não
Cachaça vem do alambique
E água vem do ribeirão”

Mais uma vez, Rodrigo foi se encontrar sozinho. Andar trôpego pela rua. O som da banda, as pessoas. Mais pareciam personagens de um filme avariado. Por um segundo fitou o imenso túnel de meter medo. O céu impregnado de cor que não é cor. Porém naquele instante não havia medo. Nada sentia. O que tinha mesmo era impressão de estar numa sala de projeção, onde tudo estava irremediavelmente desmantelado. O som falho, longínquo, por conta de um soluço involuntário entrecortado. E ia Rodrigo, flutuando no meio do povo. Viu Maria Eduarda, amiga de Carmem. Dudinha assim chamada carinhosamente por todos, era muito bem feita. Trajava uma diminuta saia, pondo a mostra toda exuberância de pernas bem torneadas. E blusa, sumariamente decotada, ofertava aos olhares gulosos, farto par de seios. A maquiagem espalhafatosa realçava seu rosto de mulata. Ela viu Rodrigo primeiro. Quis se desviar. Porém o bêbado já tinha lhe visto, partido em seu encalço, pegou-a pelo braço. Perguntou, se a moça tinha visto Carmem, a garota respondeu negativamente. Saíram conversando até chegarem ao beco do oitão da igreja de São Sebastião.

“Se você fosse sincera
Ô ô ô ô Aurora
Veja só que bom que era
Ô ô ô ô Aurora

De repente já estavam na beira do Panema. Ele acendeu um cigarro tosco, branco, amassado. E passaram a desfrutar os dois, das delícias proporcionadas pela diamba. Ainda nem mesmo haviam exalado a fumaça do derradeiro trago, ele segurou forte em sua coxa. Ela tentou se desvencilhar. Ele a imobilizou segurando nos dois braços. Outra tentativa de resistir. Porém o másculo porte físico dava-lhe vantagem. Com um puxão rápido e brutal, despiu-lhe a calcinha. Com movimentos de pernas ela continuou resistindo. O toque de seu sexo quente, coberto de pelos pubianos, roçando no pênis, só serviu para deixá-lo ainda mais excitado. Metendo-se entre suas pernas penetrou-a com a força de um animal. Gritos e choro abafados acabaram confundidos com a bagunça de bêbados que desciam pro rio.

“Ô quebra, quebra gabiroba
Eu quero ver quebrar
Ô quebra lá que eu quebro cá
Quero ver quebrar”

Cantavam alegremente os meninos, seguindo os mascarados, no meio da Rua de Zé Quirino. Era a manhã do terceiro dia de carnaval. Um condor sobrevoava o céu ali. Levantando o focinho, um cachorro de olhar preocupado, acompanhava atentamente o voo da ave de rapina. De repente o cão resolveu descer pro Panema. Se fosse um dia qualquer, também os meninos já teriam tomados a direção do rio. E seriam os primeiros, a encontrar o corpo inerte de uma moça, uma linda mulata, nua. Envolta numa poça de sangue. Degolada. Morta.


Fabio Campos  

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