Os Quintais e As Luas




A casa. De fachada simples, quase sem eiras e beiras, tinha janela e uma porta, e três cômodos: sala de estar, um quarto e a cozinha. Aos poucos meu pai foi aumentando, pois o quintal era tão grande que ia até o Largo São Francisco, que mais tarde viria a ser a Rua Marinita Peixoto Nóya. Dali avistava-se perfeitamente o Largo do Maracanã, e a ladeira que subia até o cemitério Santa Sofia. Assim, quando morria alguém, dos fundos da minha casa, dava pra ver o cortejo subindo, subindo, até chegar ao Quinto das Tabuletas. A cisterna que tomava parte do nosso quintal foi demolida, pra dar lugar a mais três cômodos. A cozinha remodelada e ampliada. Outros dois cômodos quartos dos meninos e das meninas. Entre a nova cozinha e o quarto dos meus pais, acabaria ficando uma espécie de clarabóia que anos depois mudaria numa área verde. Antes disso ocorreu o episódio de um ladrão que entrou na nossa casa.

A história do tal furto, contaremos com brevidade porque não é a desventura de um reles larápio o ponto de convergência da nossa história. Foi num dia que Francisco, o primogênito, que embora já houvesse casado, naquela noite resolveu dormir em casa dos pais. Já ia alta a madrugada, pelo quintal do vizinho, o gatuno, sem dificuldade alcançou a clarabóia. Entrou pela escadinha que Severino e Seu Zé Benjamin usavam para encher a caixa d’água do banheiro com água do Panema, trazida em ancoretas no lombo de jumento. Andou pela casa toda, no entanto levaria consigo, o relógio, uma corrente de pescoço banhada a ouro, a carteira, a calça e os sapatos do meu irmão. Já ia indo embora, e desistiu de levar a calça, deixou-a na escada. Largou também a carteira somente com os documentos.

A casa da minha mãe nos dias que se sucedem passou por uma reforma. Já estava mais do que na hora de uma recuperação na sua infra-estrutura. A última que lembro, tinha ocorrido a cerca de quarenta anos. Foi a poucos dias da revolução de 64. Naquela época notícias a uma cidade como Santana do Ipanema, encravada no sertão nordestino, chegavam através do telégrafo. A agência dos Correios, naquele 21 de março, recebera a notícia que os paulistanos tinham realizado na metrópole brasileira, a grande “Marcha da Família com Deus”, que reuniria cerca de quinhentos mil pessoas, manifestavam pela lei e pela ordem, e contra a transformação do Brasil numa república comunista do tipo adotada pelo ditador da ilha de Cuba, Fidel Castro. As Forças Armadas, Exército, Marinha e Aeronáutica, foram para as ruas, invadiram palácios de governos estaduais, marcharam contra as universidades e reprimiram com vigor e veemência os dissidentes políticos, taxados de golpistas e comunistas. Muita gente foi presa: intelectuais, escritores, artistas e políticos da linha de esquerda. Muitos deles foram deportados, outros conseguiram asilo político em países vizinhos, ou encontraram guarida em países da Europa e na América.

Em Santana do Ipanema, a revolução não passaria em brancas nuvens, também tivemos manifestantes nas ruas. Assim que a notícia da revolução se espalhou os estudantes foram pras ruas. O jeep da polícia realizou várias batidas, prendeu alguns boêmios, vários estudantes, e um professor. Alguns prédios públicos foram depredados e pichados. O prédio da perfuratriz ganhou um símbolo nazi-facista a suástica alemã, uma mão com o dedo polegar içado, e os dizeres: “Fora Comunistas!” Manifestantes invadiram o posto da Coletoria Estadual. Móveis foram atirados no leito da rua, e queimados, juntamente com diversas pastas e documentos. Ainda naquele dia, da capital chegou um pelotão da Infantaria Motorizada, soldados do exército que teriam feito uma batida na cidade sitiada. Composta de dez homens, a guarnição trajava farda de cor cáqui, coturnos de cano longo, fuzis com baionetas e capacetes em forma de bola, o que possibilitaria o pejorativo apelido de “soldadinhos de cuia”. A varredura incluía revista a prédios públicos, escolas, estabelecimentos comerciais e mesmo algumas residências. No cassino "A Lira d'Ouro" ao se negar ser revistado meu pai foi preso. Nesse tempo era banqueiro de jogos de azar, vivia do carteado. O farmacêutico Seu Caroula, compadre de meu pai, não fazia muito, havia sido nomeado delegado. Teria conseguido um salvo conduto, para que ele fosse posto em liberdade, ficando sob sua custódia. Mas só depois de ter ficado preso por uma noite na Cadeia Pública.


Feng Shui e Aruwana. E tinham uma história pra contar. Pra tentar descontrair e possibilitar amabilidade, perguntei o que significavam seus nomes. O “Clamor do Vento e da Água” disse o chinês. “O que tem a “Língua-Dura-Como-Osso” falou o índio. O chinês se iniciou no que tinha a dizer; “Amigo, somos viajantes, andarilhos pelo mundo. Viemos aqui trazer uma revelação: todo lugar no planeta tem uma vibração, libera uma energia positiva ou negativa. Se uma edificação é erguida próximo ao sopé duma montanha a energia se acumula, numa construção próxima de um rio haverá energia em constante movimento. No caso desta casa, construída próximo a um templo de oração as vibrações positivas se expandem num raio de cem metros. Todos os que nascem ou nasceram neste local estão ou foram revestidos desta energia. No entanto caso se afaste, ou vão pra longe precisam voltar com certa frequência aqui, para renovarem esta energia, que vai se gastando ao longo do tempo, até se acabar e passa a acumular no corpo a energia contrária, a negativa. Dessa energia divina é que dependem as suas, as nossas realizações pessoais, o encontro consigo mesmo, a paz, a tranquilidade interior.

E chegou a vez do índio falar. “Amigo, venho de uma tribo politeísta. Meu povo acreditava em Cinco deuses: Hotí deus do fogo; Hatí deus da terra; Watí deus da água, Hér deus do Ar, Thor deus do trovão. Certo dia chegou na nossa aldeia, um homem de longas vestes pretas, chapéu preto, uma cruz pendurada no pescoço. Ele falou de um único Deus em quem devíamos acreditar. Falou da importância da oração. Não dei valor a nada do que ele disse, além do mais disse-lhe palavras duras, daí ganhei o apelido de “Língua-Dura-Como-Osso”. E por castigo fiquei mudo. Num sonho fui visitado por um profeta que me perguntou: “Aruwana! Que rei começa com quinhentos e já no meio da vida só tem cinco? Tens até a quinta lua pra responder. Passei quatro luas tentando encontrar a resposta. Quando clamei a Deus, Ele me respondeu, Aruwana, o rei que tem quinhentos no começo e cinco no meio é o rei Davi. Então minha língua se soltou. E até hoje sou o que sou.”

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