Sentado a mesa de um bar, estava
Antonio Gabriel. Não um bar qualquer. Um pouco de acuidade ao olhar, e qualquer
um daria a perceber, que havia naquele ambiente um clima de nostalgia. Ao
fundo, noutra mesa, outro sujeito, muito parecido com ele. Lembraria Noel, um
cigarro apagado entre os lábios, folheava um jornal. Levantando uma das mãos, pedira ao garçon uma cerveja bem gelada, ao tempo que encostasse a porta pois não
estaria disposto a ficar exposto ao sol.
Não por acaso foi parar ali. Nós,
o colocamos lá. Para que os senhores entendam que tipo, temos aqui, e o que fazia
naquele local, necessário se faz que descrevamos o ambiente que costumava frequentar.
O lastro das mesas, e do balcão, eram peças inteiriça de mármore polido. Em madeira
de lei, envernizada. No rodapé um cano de ferro cromado para apoio dos pés. Por
trás do móvel, o garçon, por um segundo estático, remeteria ao crupiê
que estaria no cassino, lá ao fundo. Uma
fileira de bancos altos, redondos, estofados, coberto de napa em tom pastel. Prateleiras
em varas de ferro apoiadas, pintadas e trabalhadas com arte. Sustinham pranchas
de vidro que ostentavam belíssimos e reluzentes litros de vinhos, uísque e
licores. Refletiam exuberante colorido no espelho ao fundo. Dando um ar de vitalidade
e alegria ao ambiente. Um pouco a cima das cabeças, sóbrias caixas de alto-falantes.
Donde uma vitrola, suavemente ia misturando aos sussurros dos fregueses, gritos dos
snookers, e estalidos das bolas de sinuca chocando-se, a aveludada voz de Nelson
“Dolores Sierra vive em Barcelona na beira do cais...” Senhoritas de vestidos
tubinho enxadrezados, na companhia de rapazes, camisa colada ao corpo, com suas
madeixas tesas de laquê. Enamoravam-se enquanto saboreavam espumante “Chuva de
Prata”.
Isabela e Isabele eram irmãs
gêmeas. Filhas do coronel Paranhos, conceituado militar que servira às forças
armadas na década de sessenta, e setenta, nos governos de Médici e Costa e
Silva . Participou de muitas guerrilhas na América central. Combateu o mau
combate, subversivos, dissidentes políticos, no tempo da ditadura militar. Não
vamos contar muito sobre a vida egressa desse cidadão, melhor que entre aqui
meramente como pai de família. Porque se formos vasculhar seu passado, de
sangue inocente mancharemos a narrativa. Infelizmente temos que dizer que
alguém vai morrer. Inevitavelmente uma morte estaria para acontecer. Nosso ilustre
amigo Antonio Gabriel o pivô desse sinistro? Sinceramente não sei. Talvez,
porque simplesmente vivesse uma paixão por Isabela. Ó Isabele quanta perda de
tempo! Acontece que Isabela era casada. Casou-se justamente com o irmão do dito
cujo, Antunes Coutinho e Souza, conceituado comerciante do ramo têxtil. Começou
como simples mascate e prosperou. Abriu lojas filiais em toda região. Mas, do
que mesmo vivia um boêmio? Ora, boêmio vivia da boemia. Da sorte no carteado,
dos sonhos das mulheres apaixonadas. Tinha meu pai um ditado, que tão bem cabe
citá-lo aqui: “Assim dizia Lulu Felix: Dinheiros curtos, mulheres apaixonadas.”
Pela manhã não se via um só deles. Lá pras três da tarde é que começavam a
aparecer no passeio. Paletó e gravata chapéu branco. Ia ao engraxate polir os
sapatos. E iam assentar-se a porta da Farmácia dos Pobres. O olhar acompanharia
as velhas corocas, a reboque levando, as filhas e netas pra igreja. A rezar o
apressado terço da misericórdia. E o sino, dizendo be-lém bém blém. Acabavam
por espantar os pombos assentados no pórtico da torre da igreja. Anunciavam,
aos quatro cantos do mundo, as matinas do santo ofício.
Antonio tinha combinado com
Isabela um código, um jeito de se encontrarem sem serem descobertos. Artimanha
nada fácil, porque a casa dela ficava num ponto estratégico, afastada do centro
da cidade. Se alguém resolvesse ir até lá, era visto por toda cidade. Pros
amantes se encontrarem arranjava Antonio um jeito de disfarçar-se de vendedor
de livros, cartomante, caixeiro viajante enfim. Porem só ia mediante um sinal.
Caso ela retirasse de uma estaca na entrada da casa, um crânio seco de bovino, com
dois imensos cornos. Um negrinho filho da mucama criada dos Souza, encarregado
de guardar o ilustre amuleto, que os fazendeiros costumavam colocar na
entrada das suas fazendas pra espantar os maus agouros. Depois de consumado o
ato pecaminoso, voltava os chifres a enfeitar o portal de entrada.
Por aqueles dias estávamos à
capital do estado, Maceió. Hospedamo-nos no hotel Beiriz, Rua do Sol, de
Djavan, de poesias, de Ledo Ivo. Passamos
no antigo Bar do Chopp, entramos na igreja do Rosário. Detivemo-nos a observar
a impressionante arquitetura barroca, misturada com o neoclássico, tendências
artísticas européias do final do período seiscentista tão em voga, à época. Os
azulejos vindos de Portugal, do período imperial, desenhos seculares, em tons
azuis sobre fundo branco, retratavam a via sacra. O púlpito, elevado. Sobre gradis
ricamente adornados, com certa quantidade de bancas, delimitando espaços. Denunciando
que no passado, os senhores de engenho, acompanhados dos seus familiares,
pagavam um dízimo diferenciado para ocuparem aqueles lugares privilegiados. Pra
garantir que não dividiriam espaço com gente pobre, desclassificada, ou
escravos alforriados. Caminhando pela
rua do comércio fomos parar na Praça Montepio donde imponente edifício Brêda, o
mais alto, elevava-se aos céus, apontando pra Deus. A plena tarde, sob lúmen vespertino,
meretrizes disputavam clientes, em meio aos vociferados alardes, dos vendilhões
de milho verde assado, e tapioca. Também a falsa baiana a vender, o igualmente
falso acarajé. Um moleque puxando-me o braço anunciou: “-Moço! Aquele homem ali
quer falar com o senhor!” A pessoa anunciada pelo pivete, encontrava-se
amplamente sentado a um dos graciosos bancos da praça. Percebi-o de paletó e
gravata. Trajes um tanto pomposo pro momento e ocasião. Ao aproximar-me
quedei estupefato. O que viam meus olhos! Exatamente, o senhor Antonio Gabriel,
em carne e osso!
Era inevitável a pergunta: “-Como
se chama?” “-Ora! Como vossa senhoria mesmo me denominou: Antonio Gabriel!”
Ora, ora, pois, pois! E não é que estávamos ali, frente a frente. O escritor e
o personagem. E olhe que não tinha terminado ainda o conto. Sem mais delongas
apenas disse-me que não aceitava a tal suposta situação de matar alguém na
história. Argumentou que era um sujeito pacato, que não o envolvesse em nenhum
delito. E que na opinião dele, o crime teria um único interesse: dar um clima
de suspense, ou quem sabe manter o interesse no leitor. Concordei, em parte,
porém tínhamos um contra argumento plausível. Disse-lhe que seria pra dar mais
autenticidade a trama. Ao final do nosso colóquio ficou decidido ele não
mataria ninguém. Despedimo-nos com um aperto de mão. E seguimos cada um seu
caminho.
Antonio e Isabela tornaram se
encontrar, muitas vezes. Ó terna, doce Isabele! Antonio considerava-se, um “bon
vivant”, uma pessoa que só pensava em desfrutar a vida, e dizia: “-Tenho gosto
apurado as artes, todas: pintura, escultura, música, porém tenho predileção
pela Literatura, amo Jean-Paul Sartre que se alto intitulava “o idiota da
família”, um cínico, como eu. Enquanto meu irmão almejava ganhar muito dinheiro,
eu desfruto do seu recurso, e da sua mulher.”
Convenceria o irmão a lhe pagar, pra dar aulas de balística, a Isabela e
Isabele. As filhas do coronel desde criança aprenderam a gostar de tiro ao alvo,
gosto do pai.
Magnífica tarde de sol se fazia,
tornando-se afinal em chuva torrencial. Acabaram voltando pra casa molhados. E
lá nos aposentos do adultério, no leito dos amantes, sobre alvos lençóis. Nus
tomaram vinho pra se aquecer. Depois de muitas taças do licor dos deuses,
gargalhavam loucamente. Volúpias, beijos. Deram de imitar a cena derradeira da
trama shakespeareana. Por fim, nossa Julieta, virando-se pra Antonio indagou:
“-Oh! Meu amor... Por que fizeste isto?”
Apontando uma pistola pro peito do seu Romeu, acionou o gatilho.
Fabio Campos
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