Nossa história daria de começar
assim um tanto triste. Não por causa daquela chuva fina que caía no fim da
tarde. Tampouco tinha a ver com o rubro, no leito da rua encharcada, trazido pela enxurrada. O barro vermelho da
chácara de Seu Narciso, acabava tingindo de encarnado o calçamento da Rua São
Vicente. Uma melancolia branda, plúmbea, desenhada junto das nuvens, lá nos
cantos do mundo. Encontraram Damásio
morto.
Quem era Damásio? Um dos sete gatos de dona Milu. Veio-me, ainda agora, a lembrança de seu
esposo, Seu Benjamim, o tangedor de burros. Chapéu de massa, que um dia fora
preto, na cabeça. A copa amarrotada, bolorento na fita. A peninha colorida,
milagrosamente se mantinha intacta, a aba carcomida na fronte. Corpo franzino,
rosto sulcado de salubridade das águas do Panema. Barba rala. Camisa de mangas
compridas. Rota, nos ombros. Desgaste provocado pelas ancoretas. Os punhos
enrolados até os cotovelos. Caso Seu Zé “Bêja” tirasse o chapéu, o que era raro
acontecer, expunha uma testa alva. Serpenteada por alguns poucos fios de
cabelos que lhe restavam. O jeito dele andar é que era interessante. Andava
como se mancasse, como se acabasse de pisar num espinho. Arqueava os braços,
semi-abertos claudicante. Também a calça enrolava a bainha até a altura das
panturrilhas. Nos pés um par de alpercatas. Falava mais com o corpo que com a
boca. Se sorria, expunha os incisivos tintos de fumo. Teve um dia, que junto
com a carga d’água, trouxe-nos um gatinho enjeitado. Feio, assustado, não
parava de miar, e tremia. O bichinho quase sumiu nas mãos cascudas, enrugadas
de meu pai. Foi adotado, meu pai gostava de gatos.
O bichano morto de dona Milu havia
sido encontrado por Seu Genésio carroceiro, as margens da Br 316. De
manhãzinha. Foi levar um carreto de areia, pra reconstrução de um muro de
arrimo, que o aguaceiro derrubou, bem ali perto do santuário da Virgem de
Guadalupe. Dona Milu não entendia como Damásio fora parar na pista. Não era
comum seus gatos sairem de casa. Quando era de tardezinha, Enquanto recolhia os
panos do varal, eles a acompanhava no terreiro atrás de casa. Roçavam em suas pernas.
Brincavam fazendo estripulias, rolavam no capim verdinho. Amolavam as unhas no
caule duma goiabeira. Saltavam uns sobre os outros, e perseguiam gafanhotos e
borboletas. Depois que o marido morrera, e os filhos foram embora pra São Paulo
restara-lhe a filha caçula, com síndrome de Down, e os gatos pra lhe fazer
companhia. No fim do mês, quando recebia o dinheiro da aposentadoria, na feira
de sua mantença, dona Milu, tinha como obrigação a compra de ração. Tratava
aqueles bichanos melhor que seus filhos. E tinha esperança que um dia,
voltassem os que se tinham ido.
Da janela do quarto de Francisco,
o primogênito, tendo sido este o primeiro a ir embora, pro Paraná. Recordava. Prisioneira
das coisas ligadas ao elemento terra. Pupilas retraídas pelo excesso de luz, a
íris criando efeitos, nos reflexos do sol nos vidros da janela. Os cílios varriam
tudo que estava ao alcance das vistas, inclusive a rua. Desenganava a mente que
aparentemente não encontravas beleza em coisa alguma. O balaustre, um muro de
tijolos, a montanha tão verdinha! Lá longe. Uma estrada, um caminho, era o chão,
era a estrada, e era o sol. E viu um menino correndo, várias crianças correndo.
E viu o tempo, inexorável sem dar trégua, sem parar, não parava nunca. E uma
força estranha no ar. E a mulher que passava no caminho, preparando outra
pessoa. Roberto Carlos vindo de um tempo tão longe, a estar ali. O carteiro
procurando um destino se apoiando num corrimão, subiu uma escadaria carente de
pintura. E os olhos finalmente foram lá pro alto. Arremessados pra mais um céu
vespertino. E ficou refém dos azuis, que foram parar nas águas, saturadas de
cloreto de sódio, dos olhos. Duas pequenas manchas de marrom bem a sua frente,
num fio de alta tensão. Dois pardais conversavam com animosidade. Novamente se
abaixaram as vistas, indo colherem rosas no jardim. Uma garça estática de dar
dó, dizendo: sou apenas uma ave. Porem a imaginava uma graça, voando. E um sapo,
tão à vontade, de pernas cruzadas, imitando os banhistas quando vão a praia e
ficam embaixo de seus guardas sóis. A grama verdinha, calada, resignada, apenas
dizendo: sou grama! O pintor porem diria: Ai das rosas se não fosse você!
Sentiu que era observado. Um par de olhos de algum ponto, de algum lugar lhes
olhava. E descobriu, lá estava ele. Um gato em cima do balaustre. Era um gato branco enorme. À quanto tempo
estaria lá? A íris dos olhos dele viradas num fio, adaptadas a luminosidade,
fitava-o. As patas dianteiras juntas faziam-lhe um monge, meditando. As orelhas
apontadas pra cima diziam: estava em sinal de prontidão. Como se a qualquer
momento partiria a caçar. Será que queria dizer-lhe algo mais?
Por uma dor ainda maior que a de
dona Milu passara Zelito. Ao chegar a casa encontraria Rosalina, sua única filha,
estuprada, e morta. O crime ocorreu no sitio Barra da Talhada, interior do
município de Riacho Grande. Como era que uma desgraça desta foi acontecer. Logo
com ele Zelito, que sempre fora um homem temente a Deus. Um seguidor da Lei de
Crente. O objeto de mais valia na sua residência, era a bíblia sagrada. De todo
lucro que obtinha dez por cento doava a igreja. Todo ano, era assim. Bastava
vir as trovoadas de janeiro, azeitava as máquinas de plantar feijão. Tirava a
ferrugem das pás do arado, untava as rodas com óleo queimado. Tudo pro preparo
das terras a agricultar. Ele e a companheira, de sol a sol na lida. Tinha ano que
dava parte da terra, pra homens cultivarem-na, acordando a divisão da safra.
Naquele ano, um bando de homens viera arar parte de sua terra. Entre eles, Antonio
um mancebo viril, apelidado Negro Gato. Num cair de tarde Zelito acabaria flagrando
o negro a espreitar Rosalina nua, no banho de riacho. Pondo-se a um prazer
mórbido, ao ver a menina de dez anos apenas a banhar-se.
Aquele fora realmente um ano ruim.
As promissoras trovoadas, não vieram. As cabeçadas d’água que abasteciam os
açudes falharam, os barreiros secaram. O gado pondo-se a mirrar. Sem pasto no
cercado morrendo um a um, tudo tornado difícil. A silagem minguando. A água da
mantença da casa escasseando. Zelito em
tais ocasiões, punha uma pipa no carro de boi. E duas vezes por semana ia
buscar água nos Poções, a mais de dez léguas de distância. Resumiam-se as
refeições à fubá de milho, meio dia com um taco de charque, e a noite molhada
com leite. Mas como desgraça na casa de pobre nunca vem solteira. A mulher de
Zelito resolveu ir embora. A menina Rosalina, filha do casal, a altura dos seus
doze anos, optara em ficar com o pai.
A história triste estava chegando
ao fim. Ainda mais triste, por dois motivos: dona Milu jamais saberia que
Damásio não morrera atropelado, e sim envenenado. Aturdido saíra de casa porque
sabia que ia morrer. Comera uma isca. Uma bola, colocada, pra outro gato
ladrão. O filho de Seu Antenor perdera um canário e ofertou a ermo, a refeição macabra,
vitimando um inocente. Zelito também até hoje acredita que Negro Gato teria
sido o autor do crime hediondo contra sua filha. Se ele tivesse o cuidado de
observar minuciosamente o corpo da filha poderia ter chegado mais perto da
verdade. Não seria comum um rapaz de
vinte e poucos anos, largar pêlos grisalhos, na vítima. E embaixo das unhas da
menina, resto de pele branca, de ranhuras que dera no assassino. Ora
não era o rapaz um negro? Zelito alguns dias depois conversava com o velho
Rosalvo Maragato, seu vizinho de propriedade. A prosa versava sobre colheita, gado e carestia.
E quando deitaram a falar dos males que o corpo, com o passar dos anos dava de apresentar, Zelito até brincou, duns arranhões que o vizinho apresentava no pescoço: -Oxente! E o compadre andou brigando com uma raposa choca? Do alpendre pitavam e contemplavam o plantio, o céu azul. A luz do sol intensa não vos permitia, verem uma menina de cabelos de ouro, brincando com um gato no meio do milharal.
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