A Usina (Segunda Parte)

A rua todinha pintou-se de João de Barro na farda dos operários. O grená sacudia as saias das meninas num dançar e balançar, a volta da escola, rodeando a praça. Os pés de fícus no canteiro arremedavam enormes pirulitos brincando de verde em dois tons. A lacerdinha cintilou os amarelos daqui e dali, e foi até o fim da rua procurando um olho a arder. João Dorotheu permanecia sentado no oitão da usina de algodão de Seu Luiz dos Anjos. Enéas deu-se a lavra de alumiar o amigo sobre como Deus desinventou-se de obrar o mundo.

“No princípio Deus estava
Onde nada existia
Cobriam o abismo as trevas
Na terra disforme e vazia
E o espírito de Deus pairava
Sobre as águas profundas e frias”

“-Foi assim: Deus “tava” sozinho. Pois onde ele “tava” só existia ele mesmo. Bem “acentado” assim num canto. Assim quétinho, só assuntando. Aí pensou, pensou, e “dixe”: -Vou criar o mundo. Entônsse olhou pra cá, olhou pra lá, pra riba e pra baixo. E só via o nada. O nada é escuro, não sabe? Pois é, ele olhou, olhou... Então pegou com as mãos, um pouco desse breu. E começou a amassar. Amassou, amassou até formar uma bola. Eu acho que não levou mais que uma hora de relógio pra fazer isso. Os sete dias que se seguiram ele gastou justamente pra criar as outras coisas que tem em riba do mundo.”

“O espírito de Deus se erguia
Sobre a terra e seu futuro
E Deus disse: Faça-se a Luz
E a claridade surgia
As trevas foi pro o escuro
Deus fez a noite e o dia”

Quando dona Maroquita morreu, o padre teve que contratar três carpideiras pra chorarem no velório. Porque os parentes da finada já tinham morrido todos. As mucamas a detestavam, porque não gostava de preto, ainda mais pobre. Diziam as más línguas, bastava tocar num matuto, corria a lavar as mãos, como se pobreza fosse doença. Já o dinheiro que traziam pra doar a igreja... Ah! Esse sempre seria bem vindo. Nos dias de sábado, dia de feira livre, quando a casa do padre ficava cheia, dona Maroquita se trancava no quarto, e só saía de lá pra ir a cozinha vistoriar o feitio das refeições. Obrigava a criadagem a servi-la nos seus aposentos. Enxotava os que se atreviam a invadir a cozinha. No dia seguinte todos os forros das mesas, cortinas tinham que serem trocados. As velas acesas, até mesmo elas negavam-se a chorar por aquela ex-vivente, mal tremiam a pétala de luz. Acompanhavam quietas amornando as rezas. E os espíritos andantes, um a um, iam se acercando do féretro. Velariam até o fim, mesmo que viesse o sono nos que eram viventes que lhes faziam sentinela. Permaneceriam velando. Daquele jeito lembravam mães, ao lado do berço de seus filhinhos, embalando cantiga de ninar.   
    
“Terceiro dia agora está
Deus juntou águas correntes
Chamou a isso de mar
Pois o elemento terra na frente
Nessa parte fez brotar
Pés de frutas e sementes”

“-Deus fez o mundo pros destros.” Disse sério Seu Antonio Tenório. Estava na feira, comprando abacate. No que foi pagar, o vendilhão saiu com essa: “-Não é por nada não Seu Antonio, mas o senhor me troque o dinheiro de mão!” Porque estava pagando com a esquerda. Lá na roça, já algum tempo havia tirado a limpo a história que plantar jogando a semente com a mão esquerda davam a nascerem pés de milho e feijão mais falhado. Quando ia fazer uma anotação no caderno de registro da fazenda, tinha que ter um cuidado danado pra não borrar tudo que escrevia, a tinta da caneta tinteiro demorava a secar. Ainda menino seu pai queria que ele aprendesse a tocar sanfona. Chegou a tocar viola, mas teve que trocar a posição das cordas. O velho Antonio quis ter um pé de abacate no terreiro de casa. Ensinaram-lhe que tinha que pedir a uma menina moça pra descaroçar o fruto. A semente teria que “dormir” encima do telhado num prato de estanho que não tivesse nenhuma trinca. Bem cedo tinha que retirar sem tocar, pegando com uma colher. E plantar ainda com o orvalho da manhã, dando as costas pra nascente. Tempos depois não entendia a ciência de que o abacateiro só botaria fruto se tivesse “olhando” pra outro pé.

"E o sexto dia se fez
Deus fez seres exemplares
Criou na terra animais
Como tinha feito nos mares
Disse; Crescei e multiplicai
De acordo com seus pares"

“-Zequinha Abreu dizia que Zé de Zefinha conversava mais que o homem da cobra.” “-Ora! Terezinha! Também não ficava muito pra trás.” “-Vai ver que quando eram criança beberam água de chocalho!” Toda vez que falava em homem da cobra, madrinha Moça lembrava-se dum dia quando estavam na roça. O terreiro tomado por montanhas de vagens de feijão pronto pras batas. O paiol e os alpendres tomado pelo milho, e os carros de bois abarrotados de sacas de algodão. Ô tempo bom meu Deus! Maria de Zé Lagoa, bem acolá, sentada num batente de umburana que servia pra empatar de entrar água da chuva pra dentro de casa. A mais de hora pitava um cachimbo, enchendo o entardecer de fumo. “-Entônsse ela “dixe” “mermo” assim: “-Vixe Maria! Mais é muito cobra!” Acontece que ninguém deu valor aquilo que acabara de dizer. E ela tornou a repetir; “-Minha gente! Mais é muita cobra!” Acabaria despertando a curiosidade dos compadres, que queriam saber do que estava falando. Então se descobriu que ela referia-se a pelo menos umas três jibóias que passeava pelo terreiro, atrás de pegar os franguinhos e as galinhas.

“Nesse dia fez Adão
Moldando barro do piso
Deu sua imagem e semelhança
Discernimento e juízo
Lhe deu alma e temperança
Lhe deu Eva era preciso
Neles pôs sua esperança
E lhes deu o Paraíso”

O açougueiro Zé de Matias mantinha um caso com a mulher do barbeiro. O fuxico corria a boca miúda. Muita gente sabia inclusive o irmão do dito cujo. No sertão o povo tem um dizer que “O corno sempre era o último a saber.” E assim, quando era dia de feira a mulher do Fígaro,  se arrumava toda e ia pra rua. Passava na barbearia, Seu Cornélio dava o cobrinho “móde” fazer a feira. Depois ela ganhava o caminho do Mercado de Carne. Tapeava comprando uma fruta aqui, um legume ou outro ali. Na tarimba de Zé de Matias se demorava. Um piscar de olhos e estava marcado o encontro entre os amantes. O local combinado, o de sempre, lá no poço da pedra. Um lugar bem escondido entre as cachoeiras do rio no finalzinho da tarde. Acontece que naquele dia o irmão do galhudo tomou umas cachaças a mais, e deu com a língua nos dentes. De posse dum facão, provocando grande alarido, partiu Cornélio rumo ao rio. O povaréu foi atrás. Chegando lá, encontraram feito Adão e Eva, os pombinhos. No meio da relva, junto a frutas e legumes. Bramindo o facão resolvido a expulsar os amantes do mundo dos viventes e daquele paraíso. Lá se foi o samurai do sertão, disposto a ensanguentar de mais vermelho, o sol, da terra do sol poente.   

"Ao concluir a Criação
Deus sua obra admirou
Viu que tudo era bom
E ao homem ordenou
Domine o que há na Terra
Nos mares, no ar na Serra
Do mundo seja o senhor
Esse era o Sétimo dia
Agora Tudo existia
E por fim Deus descansou."


Fabio Campos

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