Menino Temporal

Havia ali uma bela praia. Tons, azuis claros afetando a auréola amarelo ouro do sol. Pouco a pouco esmorecendo, a medida que se afastava do soberano. De lá trás do tempo, trazendo de volta, um pouco de um muito, a muito ido. O horizonte, um risco a lápis, verde marinho. Anuviado de muitas incertezas, de destinos traçados, de mistérios, de tempos que se fora e de porvir. E o mais que havia ali, era mar e maresia. Enquanto lá do alto do monte, velava o farol.

Menino Vento
As casinhas da vila, sobre as pedras do cais, tudo feito de salubridade e tempo. Como a dizer ao vento, também somos conto. Barcos, um bailado a quebra maré.  Areia de sal, e mar nos pés dos pescadores, subia as pedras do calçamento. Cordas, redes, âncoras recolhidas. Aldo, Micau e Miro atirados aos trabalhos de desembarque, se quer se atinham que eram detalhes da paisagem. Peixes, cheiro, vítreo em negros olhos, efusivos de escama multicor. Nos balaios pro mercado indo, depois desviscerado a secar ao sol, na calçada, desfigurados. A areia da praia, a se entranhar nas vestes dos passantes. Na Praça da Piedade. Lá dentro da igreja, a sacristia, os paramentos do padre, o altar, tudo, tudo granulado, de mar desidratado. O sino no campanário, calado, olhando pro alto-mar. Lá pra de tardinha professora Belmira, de casa em casa, indo chamar as velhinhas, pele alvinha de porcelana, de cabelo algodãozinho, cheirosas a pó de arroz. Indo rezar o santo terço. A casa paroquial, sempre aberta àquela hora, ficava na Rua Joaquim da Hora. E o padre Zezinho, no passeio, distribuía carisma e cumprimentos. A caminho da escola, os meninos cercavam-no pra ganhar uma benção, um afago. No quintal da professora Niedja Café, as mangas inchadas, rubro amareladas, acenavam pros meninos lá no pátio do Grupo Escolar Ciridião Durval, metidos na suas fardas branquinhas com suspensório em shorts azuis. Paulú, magricela, com seus olhinhos de chinês, ao portão recepcionava os infantes. Enquanto dona Lourdes, a merendeira, mexia a panela e enchia de mugunzá as salas de aula. Quão grande algazarra no dia do desfile cívico.

A luz incidental punha tons de carne nas paredes da sala dos professores. A lanterna de puçá e conchinhas de mariscos ajudava. Olavo Bilac estava lá, e olhava pro futuro que um dia lhe perpetuaria “Patrono do Exército brasileiro: “Quero e sempre quis a instrução e a defesa do país, pelos livros e pelas armas. Quero a escola dentro do quartel, e o quartel dentro da escola. A segurança das pátrias, depende da inteligência e da força. O estudo defendendo a civilização, e a disciplina defendendo o estado.” A bandeira brasileira cabisbaixa, desnecessariamente tentaria impor “Ordem”, somente a duros custos conseguindo. O progresso, no entanto, demoraria anos pra vir. Sobre a mesa um buquê de flores esbanjava de cor, o que não tinha de cheiro. O mapa político da América, gratuitamente servindo-nos às ilhas do Caribe. O que ajudava muito a relaxar, ir à praia, fosse da Jamaica ou do outro lado do muro, de onde estava dava pra ouvir a ressaca. Pondo mais tranqüilo o professor de geografia. No seu primeiro dia de aula, conheceu sua turma de colegas. Entre estes a professora Jaciara que quando casasse iria ter um casal de filhos, e lhes poria os nomes de Ataualbe e Tábata. E se lhes nascesse mais um filho, seria por acidente. Se chamaria Isachar caso fosse homem, e Gioconda em homenagem a Leonardo Da Vinci se mulher fosse. E Joelma aluna do 6º ano ficaria a fim do novo professor, que ficaria mesmo a fim de Claudivania uma aluna do 7º que era comprometida, e que em breve iria casar. A Porto Calvo foram em excursão, visitaram a Casa da Cultura, assistiram uma apresentação folclórica, conheceram Calabar. Em Maragogi visitaram o museu, imaginaram-se vivendo naquela época. Estupefatos ao saber como sofreram seus antepassados, tendo a cor de pele que tinham. João estava entre eles. João nascera menino porem nunca, jamais se sentira menino, sempre se sentira menina. Depois da escola, com a molecada ganhava a Rua do Chafariz, por trás da Cadeia Pública na fonte ia banhar-se, e ver o sexo dos outros meninos, excitá-los,  excitar-se, abusarem-se a si mesmos. Uma vez tornado rapaz, teve namorados, conversou com sua mãe. Ela entendeu, não chorou, nem ficou triste. Aceitou-o como era. Amor de mãe era assim mesmo. “Meu menino.”

Menino Ventania
Chegaria intrépido, o carnaval dos coqueiros. Enfeitados, caiados, vestidos de cal pro festival do coqueiral. Frenéticas bandeirolas coloridas, estremecidas de luz, estupidamente azul. És verde, ando, esverdeando, tudo de mar. Entre acordes de trompetes, saxofones e tubas e percussionistas de bombos, caixas e taróis. E o violão, que aquela altura, era o que menos falava, se entregou. Ébrio, não tinha forças e garganta pra acompanhar os outros. Entre pó, maisena, cinzas e cerveja. De cansaço na calçada da ventania, desmaiaria ao lado córrego da água da Serra. E vinha depois de rodear o muro das casas de Seu Robinho, de Chama mãe de Nunes e Ademir, e da professora Belmira. Mas só depois de atravessar a rua, passar comportado no quintal da casa de Susana do velho Berto eletricista, das irmãs Eliúde, Sílvia e Sonia. Lá adiante o barro vermelho subindo a calçada na porta de Silvany, vizinha de Neide da Farmácia. Ainoã irmã de Aminadabe, menina boneca, olhar angélica, evangélica, na janela de pura poesia. A última parada havia sido no bar de Renê.  Ao abrir os olhos vislumbraria um céu desengomado, de nuvens de tanta alvura desidratadas, com cara de quaresma e jejum. De dentro do capim, batendo na cara, cheiro de oceano entrando pelas narinas. Se tivesse coragem de levantar a cabeça, veria o mar, àquela hora, ora sorumbático, bravio. A maré estava subindo, dali a pouco, por volta das seis da tarde, estaria arrotando bravura. Arrogância a desafiar baronesa, de ameaçar reinados de camarões, de siris Nemas, de siris moles, de caranguejos guaiamuns que andariam foram das tocas, para tanto bastaria trovejar.

E o menino ventania, não era apenas um, eram dois. Erick e Eduardo, filhos do Major Eurico e da professora Niedja Café.  Quando não tinha o que fazer, procuravam, e sempre encontravam. Escalavam os muros da casa das freiras pra pegar cajarana amarelinha, docinha de dar gosto. Fruta pão no alto do morro na propriedade de Seu Belinho, ex-prefeito. Jenipapo no quintal de Seu Gertulino. Carambola no pomar de Seu Givaldo. Jepeto, o pastor alemão do servidor público já os conhecia nem mais corria atrás. Outro dia inventaram uma brincadeira desavergonhada, de subirem no ônibus, junto com o menino vendedor de amendoim na hora que chegava de Maceió, na entrada da vila, no curtume. Pra irem até o fim da rua no bairro Salinas. Daí, cuspiam nos moleques que viam nas calçadas. Um dia chegaram ao cúmulo de colocar seus sexos pro lado de fora da janela do coletivo. No carnaval do coqueiral, outras diabruras, urinavam em copos descartáveis. Quando algum freguês ia banheiro, em surdina, substituíam na mesa, das barracas. E ficavam de longe se divertindo do fruto de suas traquinagens. 
     
Menino Vendaval
Naquele ano de eleição municipal, Isaias ganhou pra vereador. A prole longamente duplicada regozijou-se. Vislumbraram dias melhores. Dona Dulce costurava pra fora, pra melhorar a renda. Entre tantos filhos, mais de doze, tinha Ednaldo. Era um menino muito calado. Interessou-se pelos estudos, formou-se pro magistério. Professor Ednaldo sempre levava seus alunos para passear na praia. Ficavam horas olhando o movimento dos barcos, dos pescadores, às vezes com a bíblia na mão. Adquiriu os vícios do tabagismo e de álcool. Teve crises sérias, devido aos abusos. Um dia disse assim. “–Vejo pessoas que já morreram. Desencarnados me aparecem. Nada posso fazer para evitar. Isso vai além das minhas posses. Não entendo o que isso significa, nem quero entender. Falam comigo, acompanham-me pra todo lado aonde vou. Pedem-me conselhos, pedem pra resolver coisas do outro mundo das quais não tenho domínio nem noção de como resolver. Sofrem e fazem-me sofrer.” Um dia o professor largou tudo, se embrenhou na mata atlântica. Dias sem ninguém saber dele. Meses depois apareceu, outro homem, totalmente diferente, largara os vícios. Conhecera e casara com uma sertaneja. Sobre os espíritos que o perturbavam apenas disse que eles preferiam centros urbanos. Lá no sítio havia paz. Ia não ia apareciam continuavam vindo porem lá, era tão menos, e tão mais humildes. Menino vendaval virou roceiro, só vindo à vila pra pedir a benção a mãe, e matar a saudade do mar.

Fabio Campos       

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