A casa era velha. Igualmente velha,
a cidade. Um ao outro, porém valorizavam-se. E tudo ali, soubera entardecer. Duma
vivacidade bela, cheia de graça. De tristeza, resquício nenhum havia ali. Rugas, esporadicamente existiam, nos cantos dos vãos das janelas. Cabelos
brancos fruíam-lhe, no telhal franjado. E isso era muito natural. Duas claras
bóias, olhos que dormitavam. Só não fora engolido por aquela boca, porque
fechada estava a porta. Pouco importava. Contentava-se, naquela primeira
visita, a vê-la, apenas pelo lado de fora. Afinal custara-lhe uma bagatela. Por
algumas centenas de dólares, a possibilidade de realizar mais um de seus sonhos.
Não dava pra entender, a simples
mortais, como um cara endinheirado, feito doutor Vicente, fora comprar aquele
casebre, naquele lugar. Sócio majoritário duma das mais conceituada empresa de
construção civil da América Latina. Dono de uma das maiores fortunas do país. Dinheiro
aplicado em paraísos fiscais. Mansões em Miami, palacetes as margens do
mediterrâneo. Era só querer, pegava o jatinho, voava até as Antilhas. E a bordo
dum iate, ia navegar numa ilha do Caribe. Por que ali? Que segredo encerraria aquela casinha
virada pra praia de Benalmodena Costa?
Era preciso dizer que nem sempre
fora assim. O poderoso empresário, engenheiro civil, doutor Vicente
Albuquerque, não nascera em berço de ouro. Tampouco tinha aquele patrimônio adquirido
por herança. Do seio de uma família pobre de agricultores do sertão de Alagoas,
descendia. Em meados da década de trinta, seus pais migraram do meio da
caatinga, pra morar na urbanidade, de Santana do Ipanema. No centro da cidade,
construíram um sobrado, e passariam a viver do ramo de secos e molhados. Prósperos
comerciantes. E viria a crise. Sucessivos anos de estiagem. Tudo
que tinham, vendido a crédito. Não tendo como receber dos seus devedores, foram à
banca rota. Aos nove anos de idade Vicente, e seus outros quatros irmãos menores ficaram órfãos. De tanto sofrer, a mãe acabaria contraindo tuberculose. Teve que ser internada
no hospital Sanatório de Maceió. Aos domingos as visitas. Era muito doído ver os
parentes. Chegarem usando máscaras cobrindo-lhes boca e nariz. Traziam-lhe
broas de nata, goiabada e queijo do reino. Meses de tratamento sem
apresentar melhoras. Definhou, definhou até morrer. Num dia de sábado, no meio
da feira, depois de fazer uma cobrança, a um de seus credores, o pai acabaria
morto. Vítima de cinco golpes de faca peixeira.
Os parentes, tios e tias adotaram
os órfãos. Dois deles acabaram sobrando: Vicente e Alfredo. O padre Bulhões enviou
Alfredo pra casa duma tia sua, em Garanhuns. Ao completar noves anos de idade a tia do
padre ingressaria Alfredo no Seminário Menor dos Redentoristas de Santo Antonio
de Pádua. Ali Alfredo estudou Teologia, Filosofia e Direito Canônico. Pela
Universidade Católica de Pernambuco se formou advogado. Tornou-se empresário do
ramo imobiliário. Vicente foi levado pro
Rio de Janeiro, onde permaneceu na casa de padrinhos até os dezoito anos. Depois
foi pra casa dum tio militar, na cidade de Campinas, no estado de São Paulo. E
ingressaria na Escola Preparatória de Cadetes do Exército. Chegaria a Oficial Engenheiro
Militar de Carreira. A disciplina, a rigidez do serviço militar tanto influiria
na sua formação moral. Participou ativamente na construção da Fazenda Chapadão,
no interior do estado, que serviria para alojar o contingente de Cadetes da
AMAN, os famigerados ‘’Agulhas Negras’’ do qual o general Nilton Cruz era
integrante. Estava-se no ano de 1942.
A Fazenda Militar, projeto em
estilo colonial espanhol, das mãos do engenheiro-arquiteto Hernani de Val
Penteado concebido. Oficial Vicente participou também da construção da ‘’Torre Duque
de Caxias’’ edificação propositadamente erguida para servir de símbolo pra
elevar o espírito de honradez que o nome do patrono do Exército brasileiro
evocava nos militares. Estadista,
soldado, guerreiro e pacificador, Caxias constituía para aqueles bravos e
obstinados soldados fonte de luz e guia inspiradora. Vicente tomara o oficialato como
compromisso sagrado, a qual se dedicava integralmente, a ponto de considerar-se
patrimônio vivo do Exército e da Pátria brasileira. Dentre os vários preceitos
do Código de Honra do Soldado, um lema imprimira-se com suor e sangue na sua
alma: ‘’Sede irrepreensivelmente honesto em todos os atos da sua vida, não
faltando jamais a verdade, nem obtendo por meios condenáveis aquilo a que não
tem direito ou que não pode conseguir a custa de seu próprio esforço.’’ Coronel
Vicente Albuquerque, de coração amava o brasão que trazia na túnica e na barretina.
A singela composição da Escola dos aspirantes a Cadetes de Caxias. Os versos da
canção de vibrantes acordes de tão belos e profundos sentimentos, a enaltecer o
ideal de respeito pela pátria e seus honrosos ideais:
‘‘No azul do
firmamento/Cintilante apareceu/ A estrela abençoada/ Da escola que venceu/ EPC
és gloriosa/ Tua marcha é triunfal/ Os alunos vão chegando/ Com seu garbo
marcial/ Certo de que venceremos/ Luta mesmo desigual/ Ombro a ombro
marcharemos/ Pra conquistar nosso ideal/ Teu destino está traçado/ EPC
nascestes pra vencer/ Com seu garbo varonil/ Oh Aluno sempre avante/ Para maior
glória do Brasil/ Hurra!’’
O governo ditatorial não demoraria a subir ao poder, recrutaria as Negras Agulhas pra frente de batalha. Coronel Vicente Albuquerque nomeado pro DEIC. Atuou, tanto no Rio como em São Paulo. Na ‘’Casa da Morte’’ em Petrópolis. Qualquer um, pra ser considerado subversivo bastaria pertencer a UNE, a um movimento revolucionário, as guerrilhas comunistas. Ou simplesmente ser universitário, ou artistas. Daí passava a ser vistos como inimigo nacional. Militar que se preze trazia tatuado no braço o Lema ‘‘Brasil: Ame-o ou deixe-o’’. Coronel Vicente, torceu pela conquista do tricampeonato de Futebol da Seleção Brasileira, tomando cerveja, no Palácio Itamaraty, ao lado do seu maior ídolo, o presidente Emílio Garrastazu Médici, ex-Comandante dos ‘‘Agulhas Negras’’. Sentia-se um homem feliz e realizado, por fazer o que mais gostava: ajudar o governo a exterminar o mal. Dessa forma construiria seu patrimônio.
E o mundo deu meio mundo de
voltas. E tantas foram, às voltas dadas na lapa do mundo que o passado ficou lá
pra trás. Dedicava-se doutor Vicente com afinco, agora a descobrir sua descendência, a sua origem. Sabia que em Santana do Ipanema duas eram as fontes a serem buscadas: padre Francisco José Correia de Albuquerque, um dos fundadores da
cidade. A outra, Coronel Lucena Maranhão de Albuquerque. Pensou em seu irmão Alfredo,
aquele, talvez poderia ser um Albuquerque vindo do homem de Deus. Quanto a ele,
preferia que sua descendência viesse do outro. Daquele que ajudou o governo a acabar
com uma praga no sertão.
Benalmadena Costa, vilarejo debruçado,
a espojar-se na praia do mar mediterrâneo, a oeste de Málaga - Espanha. O por
do sol vislumbrava o Estreito de Gibraltar. A molhar de sal, os pés da Europa. Dali, do
meio daquele casario caiado e florido, de humilde casebre. Pras terras
devolutas - Partira o primeiro Albuquerque - pra recém descoberta colônia de
Portugal, em busca de aventura.
Fabio Campos
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