O Sinal e A Santa Cruz (Terceira Parte -Fim da Saga)

Enéas perdeu o emprego. Ficou somente alguns dias mais. Não suportando Seu Domício desabafou: “-Ô homem desligado da vida, meu Deus.” Tudo que se mandava fazer. Quando fazia, ou fazia pela metade, ou não fazia. E a resposta era sempre: “-Eu me esqueci...” Maura esperta, ofereceu-se e acabou ganhando a vaga do primo.  Ativa, dedicada. Interessava-lhe aprender as coisas. O mundo vivia disso, de desenhar, moldar, modelar pessoas.

A rua brincava de azul, de um céu do mesmo tom de antes de ontem. Sonolentas, se aquecendo ao sol as casas iam se acordando. Pouco a pouco se dissipando o frio orvalho da madrugada. Enquanto os atores do dia a dia, como se saindo da condição de imagens congeladas, pra situação de filme, como de cinema mudo. Passando cada um, pra seus velhos afazeres. Se encontrando sempre, com os mesmos. Seu Ermínio já abrira a farmácia, Cazuzinha seu assistente, vestido numa bata branca, varria a calçada. Solícito a cumprimentar dona Ismênia que passava com as filhas Isabela e Isadora. As meninas iam pra casa de dona Carmem, pra aulas de flauta doce e canto.  As atenções todas convergiam pra um ponto da cidade, o comércio. Donde emanavam todas as ações e reações. A torre da igreja um lápis de cor laranja gigante desenhando um sol amarelo gelado. Os meninos no passeio, tão carentes de cores. Feito homens feitos, como que esquecidos de serem meninos. Zezé e Tião com um carro de mão, de porta em porta, a vender macaxeira. As sextas-feiras além do tubérculo, peixe. O caminhãozinho de pau, o pião, a pipa, enquanto isso dormia dentro do baú, na gaveta da cômoda, embaixo da cama, sem pressa aguardariam o chegar da tarde pra irem à forra. Zé de Paulo morava no Pedrão, fazia rosário de coco de Ouricuri pra vender no meio da feira. Meio dia quando a fome apertasse, tiraria um tostão do bolso, ia a tolda de Seu Antonio da Garapa comprar pão e suco de anilina.  As estripulias do Mateu, a fazer com que sorrisse um sorriso azul de pão doce. Rosa de Zefinha fazia cocada e tapioca, vendia na porta de casa. O pano branquinho de dar gosto bordado com duas flores vermelhas cobria a boca do pote. Donde repousava um copo de estanho verde.

Osvalinda era amiga das duas moças que moravam na penúltima casa da Rua Nova. Amigas de irem pra igreja todos os domingos. A ponto de despertar a curiosidade por parte das mais velhas: “-Amância vamos botar cuidado nessas meninas.” Osvalinda irmã de Petronilia que todos chamavam de “Lia”.  E dizia a amiga: “-Minha mãe acha você tão bonita.” Seu Tibúrcio barbeiro, pai de Osvalinda e Alcantina, dividia um salão com Seu Thomaz Doroteu.  Manoel Porcino trabalhava no Serviço público, na inspeção sanitária. Antes somente na capital do país Rio de Janeiro, e em São Paulo existia. Getúlio Vargas presidia a nação do Brasil. Sendo um homem de visão, ampliou o setor de saúde pública estendeu pelo país inteiro. As inovadoras descobertas dos médicos sanitaristas, Osvaldo Cruz e Carlos Chagas precisavam chegar aos mais longínquos sertões. O combate a malária no norte, a varíola no sudeste. A doença do “barbeiro” campeava nas humildes casas de taipa no meio da caatinga. A picada fatídica do inseto a ceifar vidas de tantos bravios sertanejos. Missão árdua do agente de saúde, a tentar conter o avanço da doença, tendo que ir de casa em casa. Mal entendido por uns, enxotado, ou recebidos com porta na cara e ameaças de morte por outros. A exercerem fielmente seu serviço, se submetiam a humilhações. A ganharem apelidos, servindo de chacota até em marchinha de carnaval.

“A Carrocinha pegou três “Barbeiros” de uma vez/Se ouvir a tal Buzina/ Corre, corre a três por três/Traz um Balde e a Creolina / “Barbeiro” virou freguês/ do homem da Carrocinha”

Alcantina irmã de Osvalinda tinha o carinhoso apelido de “Tinô”. Berenice amiga de Alcantina era apelidada de “Caçula”, e Deolinda, amiga das duas, tinha apelido de “Lia”. “Florzinha”, filha de dona Faustina dona do “Armarinho das Flores” chamava-se Tercília, tão metida a rica, mal pisava no chão. E por isso não era amiga de ninguém. Ao cair da tarde as amigas se encontravam na casa de Luzinha, irmã de Julieta, escutavam rádio, conversavam sobre os moços que trabalhavam no comércio e na usina. Se iam a igreja, davam de olhar com desdém a roupa uma das outras. E os cochichos comiam soltam. Teve uma vez que Berenice foi só o padre sair do altar, com os corinhas pisando no seu rastro, dirigiu uns impropérios a moça do coral. Coisa de mundiça, gente invejosa. Nem uma reação da parte ofendida. Rostos pasmados de surpresa. Guardou o choro pra casa. Consolava-se a ouvir sua mãe dona Amância: “-Minha filha, Quem tem vergonha não faz vergonha aos outros.” E os insultos nunca revidados, continuariam noutra ocasião, a moça do coral indo à casa de dona “Santinha” costureira, a provar o vestido do casamento precisou passar na janela de “Caçula”. E teve que ouvir.

“Nêga do cabelo duro qual é o pente que te penteia/ Qual é o pente que te penteia/Qual é o pente que te penteia (Ondulado e permanente/ Teu cabelo é de sereia/ Misampli a ferro e fogo/ Não desmancha nem na areia)”

 “Os Anjos do Inferno” haviam criado aquela marchinha pro carnaval, daquele frívolo fevereiro de 1939, amplamente tocada nas rádios. Satirizavam sendo opositores aos “Diabos do Céu”, do qual Pixinguinha fazia parte. A moça descobriu o segredo de uma vizinha, a mãe de uma sua amiga, que traia o marido, justo com o cunhado. Os elogios desmedidos, intencionais para  conquistá-la, e com isso conseguir seu silêncio. Pobre mulher, não sabia o mal que praticava contra si mesma. Havia um sinal para que o encontro amoroso, pudesse se concretizar sem perigo. Encima das estacas próximas da cancela dos fundos, que dava acesso a casa, havia uma porção de potes de barro emborcados. O combinado  era, se caso um dos potes não estivesse numa determinada estaca, o acesso, ao pé de pano estava garantido. Os encontros ocorriam à plena luz do dia. Da janela da cozinha de casa a moça percebeu tudo isso. Era carnaval, o rádio tocava outra marchinha:

“A Paraíba já não é tão boa/ Até Recife anda tão à toa/ O João Duarte ali residente/Matou o presidente, nosso João Pessoa”

Antonio Tenório era amigo de Seu Canuto, que era esposo de dona Adélia, que era mãe de “Santinha” que na verdade se chamava Maria Rita. Eram comerciantes, dos mais ricos da vila. O primeiro sobrado do comércio pertencia a eles. Noutra esquina da mesma rua tinha a loja de Maria Serafina, esposa do senhor Tercílio Firmo, amigo de Seu Alípio, ou seria o contrário? Dizia minha vó que eles vieram de Pernambuco, começaram com a venda de café e bolo, aos mangaieiros, no meio da feira. “-Benza-os Deus! Como prosperaram.” Luzinha, Terezinha e Julieta, três irmãs, também pernambucanas, costuravam pra fora. Vizinhas que eram da casa da mãe da moça do coral, que sabia dos encontros dos amantes, e do sinal. De lá, a mulher percebera que eram vistos doutro quintal.

Seu Antonio e Seu Canuto se encontraram na casa de Sebastiana que por encomenda, torrava café. Conversaram bastante. Conversa vai e conversa vem. Deram de falar sobre o sonho e o suposto, porem não concretizado, atentado contra sua vida. Seu Canuto aconselhou o amigo ir até a Bahia. E procurasse um homem sabido pelo nome de Zé da Cruz. Seria a pessoa certa pra decifrar o sonho que tivera no dia que Manoel morreu no velório. Ia o dia declinando sobre o cheiro de café torrado. Se despediram os amigos:   “-Louvado seja nosso Senhor Jesus Cristo!” “-Para sempre seja louvado!”


Fabio Campos

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