Enéas perdeu o emprego. Ficou somente alguns dias mais. Não suportando
Seu Domício desabafou: “-Ô homem desligado da vida, meu Deus.” Tudo que se mandava
fazer. Quando fazia, ou fazia pela metade, ou não fazia. E a resposta era
sempre: “-Eu me esqueci...” Maura esperta, ofereceu-se e acabou ganhando a vaga
do primo. Ativa, dedicada. Interessava-lhe
aprender as coisas. O mundo vivia disso, de desenhar, moldar, modelar pessoas.
A rua brincava de azul, de um céu do mesmo tom de antes de ontem.
Sonolentas, se aquecendo ao sol as casas iam se acordando. Pouco a pouco se
dissipando o frio orvalho da madrugada. Enquanto os atores do dia a dia, como se
saindo da condição de imagens congeladas, pra situação de filme, como de cinema
mudo. Passando cada um, pra seus velhos afazeres. Se encontrando sempre, com os
mesmos. Seu Ermínio já abrira a farmácia, Cazuzinha seu assistente, vestido numa
bata branca, varria a calçada. Solícito a cumprimentar dona Ismênia que passava
com as filhas Isabela e Isadora. As meninas iam pra casa de dona Carmem, pra
aulas de flauta doce e canto. As
atenções todas convergiam pra um ponto da cidade, o comércio. Donde emanavam
todas as ações e reações. A torre da igreja um lápis de cor laranja gigante
desenhando um sol amarelo gelado. Os meninos no passeio, tão carentes de cores.
Feito homens feitos, como que esquecidos de serem meninos. Zezé e Tião com um
carro de mão, de porta em porta, a vender macaxeira. As sextas-feiras além do
tubérculo, peixe. O caminhãozinho de pau, o pião, a pipa, enquanto isso dormia
dentro do baú, na gaveta da cômoda, embaixo da cama, sem pressa aguardariam o
chegar da tarde pra irem à forra. Zé de Paulo morava no Pedrão, fazia rosário
de coco de Ouricuri pra vender no meio da feira. Meio dia quando a fome
apertasse, tiraria um tostão do bolso, ia a tolda de Seu Antonio da Garapa
comprar pão e suco de anilina. As estripulias
do Mateu, a fazer com que sorrisse um sorriso azul de pão doce. Rosa de Zefinha
fazia cocada e tapioca, vendia na porta de casa. O pano branquinho de dar gosto
bordado com duas flores vermelhas cobria a boca do pote. Donde repousava um
copo de estanho verde.
Osvalinda era amiga das duas moças que moravam na penúltima casa da
Rua Nova. Amigas de irem pra igreja todos os domingos. A ponto de despertar a curiosidade
por parte das mais velhas: “-Amância vamos botar cuidado nessas meninas.” Osvalinda
irmã de Petronilia que todos chamavam de “Lia”. E dizia a amiga: “-Minha mãe acha você tão
bonita.” Seu Tibúrcio barbeiro, pai de Osvalinda e Alcantina, dividia um salão
com Seu Thomaz Doroteu. Manoel Porcino
trabalhava no Serviço público, na inspeção sanitária. Antes somente na capital
do país Rio de Janeiro, e em São Paulo existia. Getúlio Vargas presidia a nação
do Brasil. Sendo um homem de visão, ampliou o setor de saúde pública estendeu
pelo país inteiro. As inovadoras descobertas dos médicos sanitaristas, Osvaldo
Cruz e Carlos Chagas precisavam chegar aos mais longínquos sertões. O combate a
malária no norte, a varíola no sudeste. A doença do “barbeiro” campeava nas humildes
casas de taipa no meio da caatinga. A picada fatídica do inseto a ceifar vidas
de tantos bravios sertanejos. Missão árdua do agente de saúde, a tentar conter o
avanço da doença, tendo que ir de casa em casa. Mal entendido por uns, enxotado,
ou recebidos com porta na cara e ameaças de morte por outros. A exercerem
fielmente seu serviço, se submetiam a humilhações. A ganharem apelidos,
servindo de chacota até em marchinha de carnaval.
“A Carrocinha pegou três “Barbeiros” de uma vez/Se ouvir a tal Buzina/
Corre, corre a três por três/Traz um Balde e a Creolina / “Barbeiro” virou
freguês/ do homem da Carrocinha”
Alcantina irmã de Osvalinda tinha o carinhoso apelido de “Tinô”.
Berenice amiga de Alcantina era apelidada de “Caçula”, e Deolinda, amiga das duas,
tinha apelido de “Lia”. “Florzinha”, filha de dona Faustina dona do “Armarinho
das Flores” chamava-se Tercília, tão metida a rica, mal pisava no chão. E por
isso não era amiga de ninguém. Ao cair da tarde as amigas se encontravam na
casa de Luzinha, irmã de Julieta, escutavam rádio, conversavam sobre os moços
que trabalhavam no comércio e na usina. Se iam a igreja, davam de olhar com desdém
a roupa uma das outras. E os cochichos comiam soltam. Teve uma vez que Berenice
foi só o padre sair do altar, com os corinhas pisando no seu rastro, dirigiu
uns impropérios a moça do coral. Coisa de mundiça, gente invejosa. Nem uma
reação da parte ofendida. Rostos pasmados de surpresa. Guardou o choro pra
casa. Consolava-se a ouvir sua mãe dona Amância: “-Minha filha, Quem tem
vergonha não faz vergonha aos outros.” E os insultos nunca revidados, continuariam
noutra ocasião, a moça do coral indo à casa de dona “Santinha” costureira, a provar
o vestido do casamento precisou passar na janela de “Caçula”. E teve que ouvir.
“Nêga do cabelo duro qual é o pente que te penteia/ Qual é o pente que
te penteia/Qual é o pente que te penteia (Ondulado e permanente/ Teu cabelo é
de sereia/ Misampli a ferro e fogo/ Não desmancha nem na areia)”
“Os Anjos do Inferno” haviam
criado aquela marchinha pro carnaval, daquele frívolo fevereiro de 1939, amplamente
tocada nas rádios. Satirizavam sendo opositores aos “Diabos do Céu”, do qual
Pixinguinha fazia parte. A moça descobriu o segredo de uma vizinha, a mãe de
uma sua amiga, que traia o marido, justo com o cunhado. Os elogios desmedidos,
intencionais para conquistá-la, e com
isso conseguir seu silêncio. Pobre mulher, não sabia o mal que praticava contra
si mesma. Havia um sinal para que o encontro amoroso, pudesse se concretizar
sem perigo. Encima das estacas próximas da cancela dos fundos, que dava acesso
a casa, havia uma porção de potes de barro emborcados. O combinado era, se caso um dos potes não estivesse numa
determinada estaca, o acesso, ao pé de pano estava garantido. Os encontros
ocorriam à plena luz do dia. Da janela da cozinha de casa a moça percebeu tudo
isso. Era carnaval, o rádio tocava outra marchinha:
“A Paraíba já não é tão boa/ Até Recife anda tão à toa/ O João Duarte
ali residente/Matou o presidente, nosso João Pessoa”
Antonio Tenório era amigo de Seu Canuto, que era esposo de dona
Adélia, que era mãe de “Santinha” que na verdade se chamava Maria Rita. Eram comerciantes,
dos mais ricos da vila. O primeiro sobrado do comércio pertencia a eles. Noutra
esquina da mesma rua tinha a loja de Maria Serafina, esposa do senhor Tercílio
Firmo, amigo de Seu Alípio, ou seria o contrário? Dizia minha vó que eles
vieram de Pernambuco, começaram com a venda de café e bolo, aos mangaieiros, no
meio da feira. “-Benza-os Deus! Como prosperaram.” Luzinha, Terezinha e
Julieta, três irmãs, também pernambucanas, costuravam pra fora. Vizinhas que
eram da casa da mãe da moça do coral, que sabia dos encontros dos amantes, e do
sinal. De lá, a mulher percebera que eram vistos doutro quintal.
Seu Antonio e Seu Canuto se encontraram na casa de Sebastiana que por
encomenda, torrava café. Conversaram bastante. Conversa vai e conversa vem.
Deram de falar sobre o sonho e o suposto, porem não concretizado, atentado
contra sua vida. Seu Canuto aconselhou o amigo ir até a Bahia. E procurasse um
homem sabido pelo nome de Zé da Cruz. Seria a pessoa certa pra decifrar o sonho
que tivera no dia que Manoel morreu no velório. Ia o dia declinando sobre o
cheiro de café torrado. Se despediram os amigos: “-Louvado seja nosso Senhor
Jesus Cristo!” “-Para sempre seja louvado!”
Fabio Campos
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