Andaluz (Tocaias em São Manoel da Paciência)

Era uma vez um lugar, não muito distante daqui. Como tantos outros lugares, tinha uma serra enorme, do alto de sua imponência, lá de cima ficava olhando pro povo. A cidade, ensimesmada formigando lá embaixo. Enquanto do verde dos seus olhos, das maçãs de pedra do rosto, dos ouvidos de cavernas azuladas e frias, misteriosamente, a montanha espreitava. Sequer pregava o olho, dia e noite. O terral a embaraça-lhe a visão nos gélidos dias de inverno. E o povo todos os dias acordava pra suas vidas sem se importarem muito com a presença dela. Alguns até que dava fé da sua existência, outros não. E se fosse aquela montanha um vulcão? Certeza pudesse ter, todos a temeriam. 

O padre na igreja, sentado no meio das bancas. Confessava uma velhinha, a montanha olhava de lá. No mercado da carne o açougueiro gordo, careca, no seu avental branco, inflado, sujo de sangue. Bigodão negro espetando a indignação duma freguesa, alarmada com o preço dum reles osso corredor. Também eram espiados pela elevação rochosa. O professor, àquela hora da manhã já havia iniciado a aula. Uma das mãos, a esquerda, metida no jaleco, a outra passava o bastão de giz entre os dedos. As lentes dos óculos por um segundo refletiram uma luz, duma cor sem cor. Percebeu que alguém o observava. Defenestrou pela janela um olhar. E foi encontrá-la. Se não era a serra, seria alguém entranhado nela. Assim sem se dar conta do que dizia, fez o convite aos alunos: “-O que vocês acham da gente subir a serra?” Proposta aceita de imediato, E foi, o dia marcado. 

Vinte e oito almas dos que eram viventes, compunha a excursão. Era um grupo razoável. O dia se quer vinha acordando, e o grupo já ia vencendo o caminho. Um novelo de cores, nas roupas esfuziantes. Chapéus, tênis e meias nos pés. Calções, e shorts cobriam pernas que nunca mais tinham visto luz solar. Faces e colos untados de protetor solar. Gritos, gargalhadas. Balbúrdia no caminho de barro. O gigante lá estava, sério, taciturno. Pacientemente esperava que viessem incautos desbravadores para conquistá-lo. Por aqueles dias, havia chovido muito. A trilha aos poucos havia se fechado. Agora mais do que nunca necessitava dum abraço. Precisava tocar algo que lhes doasse calor. Seus dedos gelados de clorofila a tocar pele morna. Calor dum corpo, o halo humano sendo envolvido, e a envolver. O sol distante, aparentemente indiferente, mas era só aparência, morto de ciúme. A subida íngreme desafio. Promessa de dificuldades, tudo era só promessas. Nem bem venceram os calcanhares do monstro verde, e as juvenis bocas e estômagos reclamaram o desjejum. Mochilas a exporem seus conteúdos. Biscoitos, barras de cereais, água, refrigerantes. Nenhum vestígio de lixo deveria ficar pra trás foi uma das ordens de véspera. As formigas organizaram-se para captar o que os invasores deixaram escapar. Estoque de provisões pro inverno, migalhas de diversos açúcares, lipídios, glicídios, jamais imagináveis que encontrariam um dia. E cada expedição seguiu seu caminho.

Bizungas, bem-ti-vis, lavandeiras em seus bailados alados angariavam olhares. Pirilampos em sinfonia muda empreendiam ataques suicidas a alvos, alvos e sanguineos. Do alto das árvores num carnaval de fotossíntese e fluorescências pendiam cipós, em serpentinas. Cactáceas, orquidáceas despudoradamente se ofereciam em néctar de seres mortais, mortíferos. Gimnospermamente entregando-se, atingido o ápice, indo a múltiplos orgasmos, num triângulo amoroso entre melipondeas, briófitas, xerófitas, mariposas, trepadeiras. Gigolôs, fungos violentamente arrancavam de pobres velhos troncos até o último tostão de seiva que ainda tivessem, deixando-os apenas vivo. Comensais desfilavam no fantástico salão de baile, tão ricamente ornado. Tão exuberante e belo que nem o rei Salomão, jamais se vestira de tanta beleza! O corpo do gigante invadido por aqueles novos seres multicolores de outros cheiros que avançavam. Objetivavam alcançar-lhe o cocuruto. O professor questionava entre seus pupilos, nomes de vegetais. Esmiuçava a vida dos cupins. De escaravelhos coprófagos. Tatus ostracistas, que diante dum cadáver não hesitavam em praticarem necrofilia. Confidenciou segredos de Mutucas, vitimadas em armadilhas de aranhas assassinas. Louva-deuses metodistas, Minhocas bem humoradas.

De repente, uma clareira, sobre um lajedo, uma pequena capela. Era uma igrejinha cor de rosa, como nos contos de fada. Uma portinha apenas, um sino, uma cruz no alto. Assentada sobre a pedra, surgia um lugar de oração. Todos se sentaram pra descansar. E do lado oposto donde tinham vindo apareceu um mancebo. Apesar da aparência não parecia um fantasma. Era um rapaz franzino, de vestes rústicas. Os pés no chão. De tão caliçados, os espinhos da mata branca não mais lhe feriam. Jeremias era seu nome. Ofereceu-se para conduzir a expedição. Sabia o melhor caminho pra chegar aonde quer que fosse naquela montanha. Era parte daquele nicho. Portava um estilingue, um bornal um chapéu de palha. Predava pra sobreviver, providenciava alimento pra si, pra sua mãe e três irmãos que ficaram em casa. Sabia de histórias, daquela capelinha ali erguida.

“Num tempo em que os homens se armavam de escudos e espadas e velhos bacamartes e saiam pelo mundo conquistando terras. Essa região era habitada por uma tribo de índios e alguns poucos agricultores. Os índios fizeram um acordo com os brancos. Cada um daqueles povos habitaria um lado da montanha. E tudo parecia muito bem, e se respeitavam, e o limite entre o espaço de um e de outro povo, era justamente aquela clareira com o lajedo que dividia a montanha ao meio. Mas teve uma vez que chegou por aqui uma caravana de ciganos que se arranchou exatamente neste local. Os ciganos se diziam do tronco da tribo de Andaluzia. Seu modo de falar era carregado e muito gesticulavam. E gostaram tanto deste local que resolveram ficar. Porém os índios e os camponeses não acharam nada interessante a ideia. Havia uma superstição que envolvia o povo cigano Eles eram considerados, bruxos, feiticeiros. Diziam que sua descendência vinha de Caim. Corria uma história que tinham sido eles os que haviam fabricados os pregos usados para pregar Cristo na cruz do calvário. 

Foram muitos os combates entre eles. Muitos foram os que tombaram sem vida defendendo cada um sua causa. Dum lado de permanência, do outro a expulsão. Vieram os jesuítas da Companhia de Jesus tentar um acordo, e para tanto construíram essa igreja colocaram ali a imagem de São Manoel da Paciência. Houve um período de trégua. Aqui próximo existe uma mina de água, um pequeno lago. As mulheres, em grupos, para lá iam lavar roupas, bem como pegar água pros afazeres de casa. Teve um dia que uma mulher se encontrava sozinha, e chegou um cigano para saciar a sede. Acontece que a mulher foi seduzida, e caiu nos encantos do homem. Essa mulher era casada com um camponês, e acabou grávida do cigano. 

Não por muito tempo, deu para a mulher esconder a gravidez. O cigano foi o primeiro a perceber o que ocorrera e a advertira para não se livrar da cria que ela gerava no ventre. Sob o risco de matá-la se porventura provocasse aborto. Não tinha filhos o casal porque o marido daquela mulher era estéril. De modo que com o avançar da gestação o camponês acabaria por descobrir que havia sido traído. E um dia, bem ali por trás da capela, o homem abordou sua esposa. Começaram uma discussão. Ele sacou uma peixeira. E a facadas, matou sua mulher mesmo diante do estado gestacional que se encontrava. Ao saber do ocorrido o cigano ficou irado, porque pretendia ficar com o bebê, quando a mulher tivesse o filho. Uma vez que os ciganos pretendia em breve irem embora. 

E chegou o dia da partida. A caravana de andaluzes levantou acampamento, partiu. Mas o cigano conquistador, não destituiu o pensamento de vingar-se do assassino do seu filho. Deixando o grupo retornou até aquele local. E montou tocaia contra seu inimigo. Amparado pelas pedras do lajedo aguardou. Viu o homem que vinha da feira, montado numa mula. O tiro ecoou espantando espanta-boiada. O homem caiu, bem por cima da pedra onde um inocente morrera no ventre de sua mãe. Dali por diante, o lugar passou a ser chamado de Tocaias.”


Fabio Campos



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