Like A Knife (Primeira Parte)

Cinco gatos se haviam nos degraus da repartição. Uns dormindo outros acordados. Era com desprezo que olhavam o mundo. Mas isso pouco importava, era perfeitamente aceitável que desprezassem o que não lhes aprazia. Preferível a fuga da realidade, a viver uma vida aparentemente sem sentido. João Ignácio foi procurar ajuda com os homens do departamento. Ouviram atentamente sua história. Dispuseram-se ajudar porem dali a alguns dias somente. Talvez não soubessem por onde começar.

Debaixo do sol, do meio dia o mundo tremia. E as criaturas tementes a Deus. Com atitudes de corpos, nas mãos postas, nos olhos voltados pro alto, nas bocas de rezas sussurradas, fervorosamente pediam, que o furor da estiagem aplacasse sua ira. Montado no seu burrico João Ignácio refazia o caminho da volta. Sob seus calcanhares deixando pra trás, a pedra angulada do calçamento, a vila. O amontoado de casas ruminantes, pouco a pouco, a ficar às costas. Minguando, minguando de tamanho, no coice do burro.  Novamente a estrada de barro a lhe abraçar, a catingueira a beijar-lhe a face. O espinho do mandacaru, a fazer-lhe um carinho com gosto de sangue. Outra vez a visão, o assoalho do barreiro, malhado de rachões. Argila petrificada. Por baixo daquela casca tinha vida, havia aonde esconder água por baixo da lama, onde o peixe Cará hibernava. Caatinga esturricada sem ver chuva a muitos dias. Retesados os arcos açoitados pelo vento de areia. Areados os cílios a lacrimejarem. Os galhos do pau d’arco escrevendo no ar, raios que jamais se apagavam. O calango sardão que nunca dizia não, dizia: chão. Cinza carbonizante predomínio da cena, acenava. O sol do céu olhava, sem demonstrar a menor reação de dó, ou piedade. O cão de João Ignácio, tanto se ocupara com as moscas, que só muito tempo depois se dera conta que seu dono se fora. E deixou à calçada, e a vila foi ficando pra trás, na ponta do rabo balançante. Pequenina vila. Acuada no resvalo dum riacho. Acanhada vila, amassada feito chapéu de couro de muito uso. 
 
“I did a lot, I know you say
I’ve got to get away
The world is not yours for the taking
Is all you ever say
I know I’m not the best for you
But promise that you’ll stay
‘Cause if I watch you go
You’ll see me wasting, you’ll see me wasting away “

“Fiz muita coisa, eu sei que você diz/ Tenho que me afastar/ O mundo não é seu para ser tomado/ É tudo o que você sempre diz/ Eu sei que não sou o melhor pra você/ Mas prometa que vai ficar/ Porque se eu tiver que partir/ Você vai me ver desperdiçando.”     João Ignácio jamais pensou que um dia estaria no meio de tão grave litígio. Ainda mais daquela maneira. Apaixonado por Maria Ronarça, não demoraria a pedi-la em casamento. As propriedades das famílias eram vizinhas, do lado que o sol se deitava, a morada da família de João. Do lado que o sol acordava o mundo, a casa do velho Pedro Barro, pai do seu grande amor Ronarça. O único obstáculo que até então separava-os, era apenas alguns novelos de arame farpado estacados que divisava as terras pertencentes a cada um. Subia e subia nos fios, com seus espinhos de aço a cortar ao meio, o Serrote de São Genaro. De cá de baixo - sem necessidade de apurar as vistas - dava “mode” a gente ver direitinho: Uma casa alpendrada dum lado, outra casa alpendrada do outro. E lá em riba, bem no meio da subida o grotão. Ali havia uma mina d’água. Podia fazer o maior verão. Tudo, tudo ali, num raio de mil braças, pra qualquer dos lados podia secar, mas naquele grotão não. Naquele em torno era tudo verdinho, verdinho! Uma beleza! E Seu Pedro num ato pra lá de danoso, resolvera derrubar a pequena área verde que ainda restava em volta da grota, pra plantar palma. João ficou revoltado com a ação, já começada sem comunicar a ninguém, pois o fazia na parte da mata que lhe pertencia.

“ ‘Cause today,you walked out of my life
‘Cause today, your words felt like a knife
I’m not living this life
Goodbyes are meant for lonely people standing in the rain
And no matter where I go, it’s always pouring all the same
These street are filled with memories
Both perfect and in pain
And all I wanna do is love you
Bat I’mthe only one to blame”

“Porque hoje você saiu daminha vida/ Porque hoje suas palavras pareceram uma faca/ Não estou vivendo esta vida/ Adeus foram feitos para pessoas sozinhas paradas na chuva/ E não importa onde eu vá, está sempre chovendo o mesmo/ Essas ruas são cheias de recordações/ Tanto perfeitas e cheias de dor/ E tudo que eu quero fazer é amar você/ Mas eu sou o único culpado.”   Quando foi de tardezinha formou-se pra chuva, enquanto a chaminé das duas casa faziam fumaça que jamais se entrelaçariam. O que era uma pena, porque se isso acontecesse, daria a formar uma bela trança de menina loira apaixonada. De tristeza o céu chorou. Os homens do departamento vieram. E ficaram um tempão debaixo do alpendre da casa de João esperando a chuva passar. Cada um com uma xícara de café na mão. A fazerem bicos, pra soprar a quentura, e pra sorverem um gole. Nem quiseram sentar-se, preferiram olhar a serra, a chuva, o grotão. As galinhas e os pintinhos buscando um abrigo do aguaceiro vindo das nuvens. As águas carregadas de tristeza de Deus. Surgida do escuro da casa, uma menina de seus doze anos. Na timidez matutina se pôs no umbral da porta dianteira. Dali, ficou espreitando os homens do governo. O moço do departamento abrindo seu melhor sorriso, perguntou-lhe o nome. João acudiu a dizer que se chamava Celina, e que era surda-muda. Com as mãos, os olhos e um sorriso, apenas de lábios, a menina disse ao irmão que o moço era engraçado, por ser muito alto. E caçoou também dos seus óculos. O sinal que criou para identificá-lo era esse: passava o dedo indicador direito em círculo, sobre o olho esquerdo. João disse: -Pode  passar o tempo que for, aonde ela lhe ver recordará de você, com esse sinal. A chuva havia passado. Puseram-se todos a subir a serra. Seu Pedro estava lá. Eles e os filhos, a olho de machado a massacrarem as árvores do grotão.

“But what do I know IF you’re leaving?
All you did was stop the bleeding
Bat these scars will stay forever
These scars will stay forever
And these words, they have no meaning
If we cannot find the feeling
That we held on to together
Try your hardest to remember”

“Mas o que eu sei se você está partindo?/ Tudo que você fez foi para o sangramento/ Mas essas cicatrizes vão ficar para sempre/ Essas cicatrizes vão ficar para sempre/ E essas palavras, elas não têm significado/ Senão encontramos o sentimento/ Que nós dois guardamos juntos/ Se esforce ao máximo para lembrar.”    A blusa, o boné vermelho, a calça índigo do moço, destacando-se contra a paisagem lugar-comum. Tudo ali olhava pro rapaz, o Cã-cão no olho do umbuzeiro, o cachorro debaixo do mangueiral, os meninos no jogo de bola no terreiro de casa. Todos mudamente diziam aos intrusos que eles eram intrusos. Seu Pedro viu o cortejo desde que iniciaram a longa subida, bem pequenininhos, lá embaixo. Só parou o serviço quando o grupo estava a poucos metros dele. Cumprimentos e apresentações. A tentativa do aperto de mão não correspondida. Cordialidade somente dos estrangeiros. Seu Pedro com sua cara de pedra quis saber por que um dos moços tirava tantas fotos. Era pra que ficasse registrada a atividade. O moço comprido crispou o rosto, ao perceber que Seu Pedro portava uma faca.

Stay with me
Or watch me bleed
I need you just to breathe  
‘Cause today, you walked out of my life
 (Stay with me, or watch me bleed)
‘Cause today, your words felt like a knife
(I need you just to breathe)
I’m not living this life…”

“Fique comigo/ Ou me veja sangrar/ Eu preciso de você apenas para respirar/ Porque hoje você saiu da minha vida/ (Fique comigo ou me veja sangrar)/ Porque hoje suas palavras pareceram uma faca/ (Eu preciso de você apenas para respirar)/ Eu estou vivendo esta vida...”    Ao dar fé da faca na cintura do campesino o moço ficou paralisado. A folha de metal, ação devastadora exerceu sobre o moço da cidade. O céu fez menção de escurecer sobre sua vista. O mundo rodopiou alucinadamente. Suou um suor frio. Pegou um pouco d’água num cantil que trazia na mochila. Sorveu uns goles, molhou o semblante de cera. O transtorno físico era visível. Seu Pedro perguntou se estava se sentido bem. O susto que a arma branca causara no rapaz vinha de uma longa história. Não era medo nascido daquela situação isolada. Em nada tinha a ver com uma possível reação inesperada do matuto. Em arriscar a própria vida em defesa dum grotão ameaçado. Nada tinha a ver com a paixão ferida de morte de João e Ronarça. Diante da fraqueza do rapaz do departamento a bruteza desmoronou. O rude coração de Pedro Barro amoleceu. Bem lá no fundo do ser, Seu Pedro trocou a capa cascuda da arrogância por uma terna dó do moço. Talvez por conta disso, estaria disposto a conversar.       



Fabio Campos  “Like A Knife”  (Como Uma Faca)  Canção by: Secondhand Serenade

Nenhum comentário:

Postar um comentário