Ouro de Tolo

 A    A vila se insinuava em pedras do cais. Casario do tempo da colônia. Alternância de cores nas fachadas de cujos telhados derramariam na sarjeta - água da chuva no inverno - luz do sol, no verão, como agora. Dentro de casa era outro mundo, diferente do que havia lá fora. A ante-sala, ricamente decorada com coisas do mar. Rosário de conchas, samburás, lagostas  vermelhas, estrelas marinhas azuis, búzios. Arpões, varas de pesca de bambu, e seus luzidios molinetes cromados, dormiam nas paredes.  Um óleo sobre tela, duma praia onde jangadeiros empurravam uma jangada pra dentro do mar. Empanada estufada dava a impressão de receber o vento que entrava na sala. A porta tinha umbrais pintados de verde, ventanas na parte superior, dava acesso à biblioteca. As estantes de livros até o teto, de longe era o destaque. Uma mesa, nua, enorme em madeira de lei, pés bem torneados sobre carpete marrom. Assemelhada a uma mulata pronta pra fazer sexo naquela penumbra convidativa. A parede do fundo, toda coberta por um tapete persa onde figurava a imagem dum Francisco de Assis, magro, hábito, cordado branco cingindo os rins. Rodeavam-lhe lobos e aves.

Mestre Belo, velho lobo que envelhecera no mar. Dois, dos três terços do dia,  sentado a porta de casa. Sempre ao mesmo tamborete redondo de três pés. Entregue aos reparos - e mesmo ao fabrico  - de redes de pesca. As mãos salinas. Rugas na testa sulcadas de sal. Brancura de sal, também nos dentes. As mãos, fios de nylon branco. Esticando-se e afrouxando-se num entrelaçamento que gerava um enxadrezado, vazado. A um só tempo frágil e forte, a ponto de prender peixes. Os olhos, duas pedras opacas guarnecidas por pregas indígenas. Um boné branco a fundir-se na carapinha crespa. Toda manhã lhe chegavam Mestre Joaquim, e o velho “General”. Joaquim, franzino, um cigarro de palha - entre os dedos  - no mais do tempo apagado. O outro, era um negro sexagenário, de ventre volumoso. De branco, só os dentes. Tinto de vermelho o branco dos olhos lacrimejantes. Toda manhã, “General” Ia passear na Rua da Praia com uma gaiola de passarinhos como se fosse uma bandeja dum garção. Sorriso farto, de lábios cheios de palavras libidinosas, molhadas de concupiscência, nas gengivas róseas. Sempre a envolver seus interlocutores em situações constrangedoras. Em histórias onde haveria de ter sexo entre ele e o outro. Nalgum lugar do passado “General” deveria ter sido um boêmio, um negro Casa nova. Dando a entender um bem-dotado virilmente, que contumaz se envolvia em relacionamentos sexuais de toda sorte. Nos trejeitos, na musculatura - no vigor da jovialidade que tivera - exímio capoeirista um dia fora. O apelido ganhou na marcação do folguedo Chegança, tradição de pai pra filho.  

A casa de Seu Belo ficava de esquina. Delimitava a Rua da Piedade, com a Rua Joaquim da Hora. Intercaladas pelo prédio da Cadeia Pública - um sobrado quadrado, solto - de dois pavimentos. A fachada da casa tinha - de doer os olhos, reflexo do sol - eiras pintadas de brancas. As telhas resignadas, cumprindo, a cada instante, o papel de ser telhado. A telhar sol e mormaço, telhar mar e maresia, telhar lua e luar. De madrugada ia chorar orvalho. Choro vindo do passado, que nunca quisera se sepultar no passado. Em 1688, negro Benedito morou naquela casa. Negro Benedito, escravo do senhor de engenho Caio Mario Alvarenga. Era encarregado do asseio da casa. O trabalho duro, mesmo assim gostava de realizar, o trato com os cavalos do seu amo. O pastoreio dum pequeno rebanho de cabritos na Fazenda Mundaú, a poucos quilômetros da vila. Fincada a beira do rio de mesmo nome. Um missionário jesuíta ensinou negro Benedito a temer a Deus, rezar, ler e escrever. E fazer velas de sebo de carneiro e cinza.  Aprendeu também a fazer preservativos de vísceras de caprinos. Dia de sábado ia pra porta da igreja de Nossa Senhora da Piedade vender o produto da sua manufatura. Um ritual tinha que fazer antes de no iniciar o dia de comércio. De pés descalços, ia acender uma vela aos pés da imagem do santo de sua devoção, São Jorge Guerreiro, pra lhe dar proteção e sorte nos negócios. 

Um dia, se encontrava no cantinho costumeiro, os degraus da escadaria da igreja, quando foi discretamente chamado por uma sinhazinha. A madama queria comprar uma Camisa de Vênus. A despeito da estranheza, o negro concordou em vender. Aquela mulher era, nada mais nada menos, que a governanta da casa do Senhor Herculano Paz de Góes, o mais importante comerciante da vila, casado com dona Isadora Costa de Alvarenga, irmã do usineiro Caio Mario Alvarenga. Uma proposta tinha a matrona a fazer àquele zulu. Queria que dali uma semana, o negro, sem ser visto entrasse, na casa da senhora Ludimila Ignácia Souza, cantora de cabaré, amante do seu patrão. Teria que ir até seus aposentos encontrar a camisinha de seu uso - pois aqueles artefatos eram usados, lavados e guardados para muitos usos. Teria que trocar por aquela que acabara de comprar. Isso porque sua patroa ia untá-la com pimenta. Intentava a matriz ferir o útero da filial, sua rival no amor. O negro aceitou a belicosa empreitada, depois de negociar dez moedas de ouro pelo serviço. Seria sua redenção. Daria pra comprar o seu indulto de alforria. No dia aprazado, aproveitando-se da calada da noite, o escravo seguiu pelo jardim, um capataz fazia a guarda. O negro conseguiu passar sem ser visto. Ao chegar à biblioteca, acabou derrubando um candelabro, o que provocaria um incêndio. Na ânsia de escapar foi visto pelo capataz que lhe deu um tiro pelas costas. Mesmo ferido o negro conseguiu fugir. Seu Belo tinha visões de vidas passadas, estava dormindo e se acordou de madrugada com o quarto em chamas. Aturdido acudiu a porta, a tentar fugir do fogaréu. De dentro das chamas surgiu o negro Benedito. Disse-lhe para acautelar-se, pois tudo não passava de uma visão. E narrou-lhe o que lhe ocorrera, à tempos passados.

Dona Quinô, era vizinha de Seu Belo, do lado da rua que a conversa se esquentava de sol toda manhã. Maria Auxiliadora das Neves era negra, quilombola. Deu-se conta que inteirava os oitentas anos de idade, sentada na porta de Seu Belo, no instante que contava sua história. Nascera no Sítio Flor do Manguezal. Seus pais viveram e morreram no trabalho forçado. Explorados muitos anos pelos senhores de engenho, num regime de escravidão. Viu-se órfã aos doze anos. Ficou bolando nas mãos de um de outro, nos ranchos dos peões no meio dos oceanos canaviais. Um dia três homens bêbados a obrigaram a fazer sexo, foi sua primeira vez. Tria dito que ficou - traumatizada não – com muita raiva. Por ter sido uma coisa contra sua vontade. Encarava tudo com naturalidade de bicho. Achava que tudo que lhe acontecia, era porque tinha de ser. Considerava tudo como sendo coisas de destino: o fato de ter nascido, pobre, negra, desletrada. A vila da praia, teria sido mais um acaso. Um bando de tropeiros a encontrou vagando pela mata. Suja, maltrapilha parecendo um bicho do mato, amedrontada. Perguntaram-lhe se queira seguir com eles. Com aceno de cabeça disse que sim, e foi. Torcia apenas que não lhe fizessem mal. Tudo o que queria era um prato de comida. Ao chegar a vila, viu uma pequena aglomeração na porta da casa paroquial. A congregação das Irmãs Carmelitas acolhiam retirantes, cortadores de cana, fugidos dos engenhos, O magro salário que recebiam ficava todo na mão do dono do barraco, a quitar parte de suas dívidas desumanamente impagáveis. Asquerosos acordos eram obrigados cumprir. A ter que entregar mulheres ou filhas menores pra ficar - despirem seus corpos, e deitarem-se - com os feitores e donos de barracos. Se conseguissem fugir do inferno verde, vagavam sem dinheiro, nem condições de voltarem pro sertão.

Foi nos dias de novena da padroeira daquele ano, chegou à vila um bando de ciganos. No alto do morro, próximo ao farol, debaixo dum grande oitizeiro, montaram acampamento. Numa manhã de quarta-feira, o chefe do bando mandou um recado para o senhor Abelardo Cunha, o Intendente que Administrava a vila. Teria que entregar ao bando, um carro de boi cheio de peças de ouro puro, até o meio dia do domingo. Do contrário, a vila seria invadida, saqueada e incendiada.  
  
Estava para acontecer a maior chacina que o vilarejo teria presenciado em todos os tempos.  Com tinta dourada o chefe da vila mandou pintar muitas peças de ferro e prata, a encher um carro de boi. E lá se foram os homens do administrador, morro à cima, conduzindo o carro rupestre, com a carga enganadora. De repente o sol se escondeu, mudando o tempo pra chuva. A população aguardava no sopé da montanha armados com pedaços de pau e foices, numa barricada. Grossos pingos vieram sobre as peças de ouro do engano, lavando e descobrindo o embuste. Ao perceberem o que ocorria, os ciganos enfurecidos avançaram de encontro ao cortejo que subia. O céu pareceu que fosse desabar. Um estrondo assombroso se ouviu. Seguido dum raio que veio sobre o imenso oitizeiro. Por um instante o alto do morro transformou-se num retrato do inferno.  Da corja de ciganos não sobrou um só.  Morreram todos, totalmente carbonizados.


Fabio Campos   

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