De pé, na porta da delegacia, se encontrava
Josuel. No alto do último degrau se fazia. Da forma como estava, assemelhava-se
a um tontem, daqueles que aparecem ao centro das ocas indígenas, de filme
americano feito “Um Homem Chamado Cavalo”. Já se haviam passados tantos anos, e
ainda lembrava. Quarenta anos separava-o do filme. De cadeia, vinte anos acabavam
de cumprir. Sentenciado por ter matado os pais. A liberdade veio justo no dia
que o Brasil jogava contra a Holanda, na Copa do Mundo de futebol, da África do
Sul. Uma só pessoa não havia, a testemunhar sua soltura. Ninguém nas ruas, nenhum
carro cruzando a pista. Um dia muito estranho. Fazia tempo que não se sentia
tão sozinho, melhor assim.
Pra onde iria? Não havia uma casa
pra onde pudesse voltar. Se quer um familiar pra onde pudesse retornar. Sem se
dar conta, procurou um dos bancos da pracinha defronte ao prédio da Cadeia. Sentado
ali, talvez tivesse disposição pra pensar no que fazer. Vontade nenhuma tinha
de seguir pra lugar nenhum. Interessante como nos primeiros anos de prisão,
tantas vezes sonhou com o dia em que ganharia a liberdade. Dizia a si mesmo que
ao por os pés fora dali, iria pra um bordel. Com todas as raparigas ficaria a
ouvir música até alta madrugada. E beberiam tanto e tanto. Depois faria com que
todas ficassem nuas, e tomariam banho de cerveja, até arriarem completamente, Nenhum
daqueles planos parecia ter mais sentido. Olhava com certa empatia o velho
prédio. Naquele velho sobrado um outro dele ficara sepultado. Um outro ele,
para sempre ficaria enterrado lá. Não teve como não sentir um nó na garganta. Um
gosto amargo na boca ao virem recordações tão desgastadas, maceradas. Nas
ensebadas paredes daqueles grilhões sucumbiram. Aqueles calabouços e seu abominável
poder de transformar homens em zumbis. Desencarnados fantasmas revestidos de
pele, ossos e ódio. Entravam homens, e se um dia conseguissem sair, sairiam
aliens, sem almas. De tanta exposição aquele inferno, seus espíritos acabavam
não conseguindo mais retornarem aos corpos dos seus donos. Ainda que o corpo
ganhasse a maldita liberdade. Irrecuperavelmente condenadas àquelas trevas,
ficavam os sopros de suas miseráveis vidas.
De repente Josuel começou a
sentir falta de ar. O mundo e tudo que havia nele, começou a rodopiar, e em
seguida suas vistas pondo-se a escurecer. Veio-lhe ânsia de vômito. E tudo o
que havia no seu campo de visão parecia que estava derretendo. Lento e
pegajosamente derretia-se. Estado febril, seu corpo em brasa. O maxilar enrijecido
provocava bruxismo. Debaixo do sol quente sentia calafrios. Nos mais recônditos
pontos obscuros da sua personalidade, terríveis fobias desenvolveram-se. Mesmo
fotofóbico tentou fixar o olhar no ponto mais longínquo, que sua visão pudesse
alcançar. Uma serra, à pelo menos vinte quilômetros de distância dali. Isso lhe
causaria tontura e mal-estar. Tantos foram os anos deitando visão, a coisas a
poucos metros do seu corpo, que ao atirar as vistas pra tão longe, veio-lhe
vertigem. E o mais íntimo do seu ser provou nauseante vazio. Com um esforço que
lhe causou um aperto no peito, recordou o dia que deu entrada ali. Lembrou que
ao ser conduzido pela polícia para o interior das masmorras. Sentia como se não
fosse ele, no seu próprio corpo. Como se possuído por um outro ele. Por vários
dias sentiu-se assim. Como se em transe. Só entenderia o que se passava, depois
de várias sessões de psicanálise. Lembrou-se de doutora Lúcia, a psicóloga. Ao
entrar pra cumpria a pena, houvera diversas sessões. Eram para que pudesse se
adaptar ao convívio de apenado. Já na preparação para sua soltura mais
consultas. E ficava claro que não estava preparado para a volta ao convívio
social. Nunca, jamais estaria. Doutora Lúcia trazia-lhe livros de auto-ajuda.
Um dia Josuel pediu-lhe emprestado um, que ela estava lendo. Era do filósofo
Nietzsche. Pediu emprestado, e nunca mais devolveu. Abriu a bolsa. Guardado
entre sua roupa surrada, lá estava: “Além do Bem e do Mal”. Pôs-se a folhear
colocando o bojo bem próximo ao rosto. Gostava de sentir o cheiro liberado pela
tinta do papel. Cartas de baralho que marcavam páginas viciadas caíram no colo.
De tão lidas algumas páginas adquiriram pequenas dobras na ponta superior.
“Em nossa época talvez existam
cinco ou seis cérebros que começam a suspeitar que talvez a física não seja
reais que um instrumento para interpretar e regrar o mundo, uma adaptação para
nós mesmo se nos é permitido dizê-lo, e não uma explicação do universo.
Entretanto, na medida em que a física se apóia na crença dos dados
proporcionados pelos sentidos, esta vale mais, e continuará valendo mais –
durante muito tempo – que uma verdadeira explicação. Conta com o testemunho dos
olhos e dos dedos, isto é, a vista e o tato. (passou várias páginas) Pois não há
quem diga que o mundo exterior é obra de nossos órgãos? Sendo assim, nossos
próprios órgãos seriam obra de nossos órgãos. (...) (passou a mais páginas
adiante) De onde retiro minha noção de “pensar”? Por que devo crer na causa e
no efeito? Com que direito posso falar de um “eu” e de um “eu” como causa e
para cúmulo, causa do pensamento? Aquele que se atrever a responder
imediatamente a estas questões metafísicas alegando uma espécie de intuição do
conhecimento, como se faz quando se diz: “eu penso e sei que isto pelo menos é
verdade, que é real.”
Vieram com muita nitidez
recordações lá da infância. Josuel pensou em Deus. Desde pequeno guardara a imagem
do Criador como um velho ermitão. De veste e barba longa e branca. Entronado em
nuvens aturdida de tanta alvura! Cheio de sabedoria a causar medo nas crianças
traquinas. Um deus que era concebido para ter piedade dos pobres, e que
castigaria miseráveis decaídos que cometessem delitos graves. Ele era um desses.
Preferia ser odiado, a ser digno de pena. Não se achava digno de piedade. Fosse
lá o que fosse que tivesse feito, merecia pagar pelos seus atos.
O grito de uma criança correndo
na praça, a soltar fogos desnecessariamente. O Brasil perdera.
Lembrou do seu irmão Ezequiel que gostava de futebol, e secretamente torcia pelo
Flamengo. Porque sua família eram todos crentes. Ezequiel era mais velho que
seu irmão Josuel. Havia ainda as duas irmãs Ester e Rute. Eram os filhos de Seu
Jerônimo e dona Elvira. Moravam no Sítio Olho d’água do Amparo. Uma família de evangélicos. Gente
temente a Deus. Desde pequenos aprendiam a ter o temor de Deus, respeitar as
Sagradas Escrituras. Josuel gostava de jogar bola, mas o pai o proibia
severamente dizendo que futebol era uma invenção do demônio. Como conceber que
um inocente jogo de bola pudesse levar a seu irmão a arder no fogo do inferno?
Uma noite acordou aos gritos. Tudo por causa de um sonho. Nele seu irmão era
arrebatado por Satanás para dentro do inferno. Pois iam pro campinho na várzea
do Riacho João Gomes, jogar bola mais os amigos. E no maldito pesadelo ele ia
sorrindo, pro inferno. Acenando-lhe com seu sorriso de menino peralta. Terrível
grito de horror ecoou no seu quarto, ao sentir as labaredas a lamber os
pequenos pés descalços do irmão. O medo era perdê-lo, pro Tinhoso. E saber que
nunca mais o veria. Nem no sonho o pai
descobrira que o filho jogava bola escondido dele. Ao despertar daquela forma
teve que mentir, pela primeira vez na vida mentir. E logo ao pai, cheio de pavor pelo que vira na visão
sonífera.
Disse-lhe que havia sonhado com um peixe vermelho, gigante. Estaria
ele as margens do Riacho João Gomes pescando quando surgiu enorme Tilápia, vinda
das profundezas do Nilo. E o peixe lhe falou. Dizendo que viera lhe devorar, como
havia feito com o profeta Jonas. Para que se cumprisse a palavra. Seu Jerônimo
ficou maravilhado ao ouvir o relato do filho. Sem jamais imaginar que aquela
premonição, verdadeira ou falsa, um dia se cumpriria. Josuel daquele dia em
diante passou a ter várias crises de loucura. Mentira pro pai, isso lhe consumia. E numa noite de forte trovoada.
Enquanto raios e trovão cortavam o firmamento, do leito conjugal verteu-se sangue, o
sangue de seus pais.
Fabio Campos
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