O Livro de Ezequiel (Primeira Parte)

Estava deitado no chão, na posição fetal. Foi assim que acordou. Tudo escuro a sua volta. Havia umidade, um cheiro forte, enxofre. Metano? Esgoto. Esforço pra se lembrar como fora parar ali. Os olhos em brasa. O que estaria fazendo naquele lugar? Aos pouco acostumando à penumbra.Ao alcance da mão uma parede cimentada cheia de bolor. A poucos centímetros do seu rosto. Em algum lugar, uma torneira pingando, martelando o cérebro. Cada gota, lentamente caindo de muito alto. Explodindo os tímpanos. Tiros estraçalhando-lhe a cabeça. Não restando resquício de oportunidade pra coordenar ideia alguma. De tudo aquilo afinal, o que fazia sentido? O ronco de alguém dormindo. Não sabia ao certo se era real, não naquele estado de consciência. De hora em hora, passos num corredor, dando-se a entender muito longe. Pesadas portas de aço gemendo incômodas nas dobras toda vez que precisavam ser abertas. Molhos de chaves tilintavam entre dedos de mãos irrestritamente nervosas. Um frio percorrendo os ossos fazia com que a mandíbula fosse apertada, com tanta força, que se a língua interpusesse aos dentes partir-se-ia, irremediavelmente.

Lembranças de casa chegaram com nitidez, porem em relampejos. A mãe na cozinha, virada pra pia preparava alguma coisa. A peixeira luzidia na mão. Cheiro de legumes cozidos. Lenço na cabeça, atado por baixo do queixo duplo, a realçar enormes bochechas róseas. O avental engordurado cobria obesidade de ventre. Grossos meões em chinelas de dedo escondiam as varizes subida as pernas. O pai, arriado na velha poltrona. O dia inteiro metido no pijama. Sob o efeito de barbitúricos adormecia e acordava, a televisão assistia-lhe. Daquele ângulo dava pra ver apenas a calva, e uma ponta do aro dos óculos. Numa mesinha duas caixas de remédios. Um pires com dois comprimidos, talvez fossem pra gastrite e controle da pressão arterial. Meio copo com água. Um frasco de adoçante, uma xícara vazia com um refil de chá verde. Um prato com meia lua de papa de aveia jazia no braço da poltrona. Migalhas de pão no chão. Um gato branco, enorme, alisando-lhe as pernas do pijama, enchendo-lhe as meias de pelo. Era noite, a mãe agora se estava no quarto, de camisola sentada na cama. Revirava alguma coisa na gaveta do criado mudo. Um rosário de contas azuis pendurado num crucifixo prateado, logo acima da cabeceira da cama. Uma vela apagada. Uma caixa de fósforos caso à hora derradeira chegasse, não pegá-la-ia de surpresa. Uma lanterna, pro caso da vida persistir, e a única coisa a faltar ali fosse energia elétrica. A parede tinha um enorme Zepelin, numa mancha de umidade. Duma infiltração da caixa d’água do banheiro. Impregnados de mofo os forros da cama. O que fazia com que espirrarem sucessivamente até tornar-se coriza. Antes de deitar-se consultaria um calendário de 1972, colocaria o dedo num dia do mês de julho circulado com risco de caneta esferográfica. O que de importante teria acontecido naquele dia?

Havia louça suja na pia. Um rato passou do ralo pra detrás do fogão. Dali a pouco reviraria o que havia no forno. O gato obeso estirado no sofá. Viu o movimento do camundongo, e sequer se dispôs a persegui-lo. A lerdeza, a preguiça, a empáfia, estes e outros azedumes humanos talvez atingissem o bichano. Na verdade, o sentimento mais presente ali era o medo. Implacável invadindo almas, admoestando as carnes. Um medo mórbido, de viver, e de morrer. O mundo rodopiando e ameaçando derreter tudo feito peças de museu de cera, expostos ao calor. O médico diagnosticou labirintite. Maldita tontura, um comprimido não evitaria a náusea. O pão com café revirou o estômago, e ameaçava sair em forma de larva. Tinha que tomar um antiácido. Caso não encontrasse um, encheria a boca com uma massa qualquer, mastigaria arroz cru. Abriu a gaveta, e a faca quase o cegava. Sequer gostava de tocá-la. Portava e via-lhes tremores por todo o corpo. Depois de empunhada aparentemente tudo se normalizava. Era como um alcoólatra que depois do primeiro copo via restabelecido os nervos. Pensava nela cortando músculos expostos. Estranho prazer de ver o fio de aço penetrando carne. Apertara o gume com tanta força que o sangue pingou da mão tingindo o chão da cozinha. Estranhamente não sentia dor alguma.

Ali estavam seus pais. A quem tanto aprendera respeitar, e odiar. Ultimamente dera pra pensar de como abrira mão de sua vida pra cuidar deles. Acreditava que tudo era coisa do destino. A vida se encarregara pra que fosse daquele jeito. O quarto período do curso de Direito, acabara por desistir pra dedicar-se a eles. A área criminalista exercia-lhe fascínio. Tantas leis que antes de evitar, beneficiavam o crime. Tornou-se alguém que descobrira um câncer no esôfago agravado pelo tabagismo e que acabaria por assassinar os pais pra ficar com a herança. Sempre levara uma vida desregrada, Foi necessário amadurecer e apodrecer na idade pra perceber que abrira mão de viver pra cuidar dos pais, idosos. Não casara, não constituíra família. Administrar-lhes os remédios controlados. Os tremores das mãos. O zumbindo no ouvido, a labirintite.  Os medos, os vícios. As imagens deslizando, gelatinosamente. O pai continuava assistindo televisão. Ou será que dormia? O relógio na parede da sala dizendo que já eram mais de duas da madrugada. No filme da tevê um assassino invadia um apartamento de uma mulher. Um mascarado se escondendo atrás das cortinas, Alguém via a ação do bandido de outro apartamento, e em vão tentava avisar a moça do perigo. As luzes acesas. A mulher andando pelo apartamento, sem saber que a morte lhe rondava. O pai dormindo, correndo igual perigo da mocinha da televisão.

A noite estava muito quente, a mãe tinha ido tomar banho, não viu a cena do bandido na televisão. Muito menos a iminência do perigo que corria. Esfregava as costas com um escovão, sentada dentro da velha banheira de estanho, cheia de água de sabão. O sangue tingindo a água azulada. Uma touca branca na cabeça. Os pingos do chuveiro misturando-se a água sanguínea. A faca estava lá. Proibia-lhe terminantemente de portar uma faca. Não havia desculpa ou razão, qualquer que fosse. O chá, o líquido quente descendo por dentro da garganta. Outro líquido quente vermelho, jorrando da jugular, descendo pelo pescoço, empapando a camisa do pai. Nenhum grito de dor, nada. Ao menos o último suspiro. Daqueles que dão os moribundos, nada. A mãe se quer percebeu o assassino aproximar-se, de cabeça baixa olhando pras mãos, viu uma sombra descer sobre si. Só então percebeu que havia alguém mais no banheiro do quarto. Pensou que fosse o marido vindo aliviar a bexiga, e que depois voltaria pra televisão. E mais tarde deitar-se-ia ao seu lado na cama. A faca deslizou macia sobre o seu pescoço. A pele flácida lembrava a galinha sendo desviscerada na pia da cozinha, nos dias de domingo. Macia deslizando, e o sangue quente, indo encher dum vermelho vivo a água de espuma de sabão, da banheira. O pai morto a televisão ligada. A mãe morta, o chuveiro ligado. Enchia a banheira d’água, misto de sanguínea, e azulada.

Acendeu um cigarro ficou sentado olhando pros anéis de fumaça que fazia com a língua. Não sabia o que faria com os corpos. Se não tivesse tão cansado retalharia. Colocaria em malas, e iria jogar num terreno baldio. Longe da cidade cobriria os pedaços de corpos para que não congelassem de frio. Temia pelas aves de rapina. Lembrou-se que era inverno, não havia delas naquela época do ano. E os cães? O filme do bandido no apartamento da moça já acabara. Agora passava uma aula de mecânica, logo, logo, amanheceria. Quem seria capaz de cometer tão hediondo crime? Quem seria o autor daquela barbárie? Não teria coragem pra cometer tamanha atrocidade jamais.  Não se animava a limpar toda aquela sujeira, esconder provas. Somente um criminoso frio e calculista mataria os pais. Pior, sem sentir o menor remorso. Talvez alguém como aquele bandido que atacou a moça no filme.

Pegou um livro de capa amarela na estante. Era de Aritmética viu que pertencia a seu irmão, tinha o nome dele escrito de caneta na contracapa: Ezequiel. O livro era do ano 1972. Lembrou do calendário, fora naquele ano. O champanhe que não era champanhe era Sidra. Falta de conselho não foi. O próprio diabo tantas vezes lhe aconselhara para que não fizesse besteira. Preferia que vivesse honradamente a ter seu inferno particular, ainda no mundo dos vivos. Precisava dele ali. Era muito mais cômodo, no inferno já havia gente demais.  Olhou pela janela. Lá encima uma lua branca, perdida no azul do dia. Soprou uma baforada do cigarro. Amenizando o vermelho dos olhos, um gosto de sangue na boca. Aquele era gosto antigo.

A vitrola tocava Vivaldi à matina. A camareira chegou ao trabalho. Cumprimentou-o. Acostumada a não receber resposta, cumprimentava-o assim mesmo. Depois do que viu, saiu esbaforida, aos gritos. A porta aberta tornava público o sinistro. Um vizinho ligou pra polícia. Não demonstrou a menor reação. Um policial, no seu procedimento padrão apontado a arma, dando voz de prisão, enquanto outro lhe punha algemas. As luzes da viatura piscando lá fora sem destaque, afinal era dia. Realmente se tudo, tudo não fosse tão real. Confundir-se-ia com a cena do filme que assistira naquela madrugada.


Fabio Campos 

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